domingo, 8 de novembro de 2015

Jus ao nome

Diante da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) ajuizada ao Supremo Tribunal Federal pelo partido Democratas, vulgo DEM, em relação à adoção da política de cotas raciais para seleção de estudantes pela Universidade de Brasília, proponho o seguinte questionamento: o posicionamento do partido em questão realmente condiz com seu nome, o qual tão ostensivamente se orgulha de carregar?
Vamos aos argumentos. Arguiram os representantes do DEM que o posicionamento adotado pela UnB em relação ao processo de admissão de estudantes desrespeitava uma série de preceitos assegurados pela Constituição Federal, tais quais o princípio da dignidade da pessoa humana, o direito à educação, o repúdio ao racismo, a meritocracia e o direito à igualdade. Levando-se em conta o contexto histórico-sociológico brasileiro, seriam, no entanto, de fato razoáveis, justas e democráticas as propostas apresentadas pelos Democratas?
A leitura atenta do texto "Poderá o Direito ser Emancipatório?", cujo autor é o notável pensador português Boaventura de Sousa Santos, induz a reflexões que permitem muito bem fundamentar uma resposta negativa aos dois questionamentos apresentados nos parágrafos anteriores. De fato, ao introduzir conceitos tais quais fascismo social e sociedade civil incivil, Santos explicita a existência de determinados setores da sociedade cuja principal característica é justamente não serem contemplados pelas políticas públicas estatais, além de se encontrarem submetidos a diversas formas de opressão e jugo promovidas pelas classes dominantes, segundo a lógica de instabilidade perpetrada pela globalização do capital em moldes neoliberais. No contexto tupiniquim, por força de gritantes fatores históricos, um dos segmentos passíveis de serem situados no quadro de marginalização denunciado por Boaventura ao tratar de sociedade civil incivil é justamente a população negra. Em relação à esmagadora maioria dos negros brasileiros, a presença do Estado se faz somente através de um modus operandi punitivo e hostil, que lhes nega, além disso, garantias básicas as quais deveriam ser asseguradas a todos os indivíduos. Daí o caráter eminentemente incivil, caracterizador da exclusão do contrato social. Fora isso, o já referido fascismo social age de maneira a perpetuar tal processo de marginalização, pelo fato justamente de tentar conservar a minoria étnico-racial submissa a um panorama e a um ideário nos quais a mesma se encontra em decisiva desvantagem.
Oras, não é preciso ir muito a fundo para constatar que a situação atual da população negra brasileira por si só já apresenta incompatibilidades com as determinações constitucionais. Será mesmo possível falar em princípio da dignidade da pessoa humana ao se tratar de um contingente de pessoas às quais são negadas as mais elementares garantias individuais? O direito à educação, por sua vez, efetivamente contempla e surte efeitos nos indivíduos pertencentes a este mesmo contingente? Não será o fascismo social, em suas diversas formas, conivente com atitudes racistas? Não é a raça um dos fatores do fenômeno de exclusão social incivil? O que dizer então da eficácia do direito à igualdade para a população negra? É justo e democrático, ademais, submeter a critérios meritocráticos um segmento da população marginalizado e sujeito ao ônus histórico da escravidão e de uma emancipação social mal estabelecida?
No Supremo Tribunal Federal, o voto do ministro Ricardo Lewandowski, ao abranger todas essas questões de importância substancial a partir de referências textuais diversas, praticamente esgotou o assunto, demonstrando a plena conformidade e adequação da política de cotas da UnB com as disposições constitucionais. Os Democratas, por sua vez, advogaram uma causa essencialmente anti-democrática, visto que adotaram uma postura perpetuadora de exclusão, não participação e marginalização. A emancipação, segundo defende Boaventura, não pode prescindir da inclusão, participação e colaboração da sociedade como um todo na construção e no exercício da política. O parecer final do STF representou, pois, uma forma de emprego emancipatório do direito, uma reação de legalidade frente à não-cidadania, que se valeu do Estado para garantir níveis mínimos de inclusão, em forma admitida por Santos no trecho final de seu texto.

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