quinta-feira, 5 de março de 2015

O aborto de anencéfalos à luz de Bourdieu

O sociólogo francês Pierre Bourdieu buscou, em sua teoria, compreender a sociedade não de forma superficial, mas a partir de uma análise extremamente profunda. O autor interpretava a sociedade como uma realidade constituída por campos, dentre os quais estaria o campo jurídico, interconectados, porém autônomos. Cada um dos diversos campos, que constituem o âmbito social, apresenta características específicas, cuja especificidade é a existência de um poder simbólico, como a linguagem jurídica no campo do Direito, e uma gama de outras estruturas, que constituem o Habitus de cada campo.
No que diz respeito ao julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores de Saúde (CNTS) com a pretensão de reconhecimento da inconstitucionalidade da hipótese da criminalização do aborto de fetos anencéfalos, várias são as prerrogativas apontadas por Bourdieu que podem ser identificadas.
Primeiramente, o autor coloca a necessidade de reconhecimento de que a teoria kelseniana, a qual dita que o Direito é um fim em si mesmo, é falha. Isto porque, consoante a Bourdieu, apesar da autonomia dos diversos campos sociais, estes são perpassados por diversos outros campos e influências, fazendo com que se delimite uma independência relativa. Com o campo jurídico não seria diferente. Dessa forma, na argumentação do andamento da ADPF diversas são as áreas disciplinares a que recorre o Direito para embasar-se, como o campo da Medicina, da Psicologia, da Biologia e da Sociologia. A conjugação das diversas áreas do saber é um trabalho hercúleo, mas necessário para a não decisão monocrática.
Além disso, é importante destacar a identificação dos “espaços possíveis” na teoria de Bourdieu, os quais seriam específicos e limitados; sua transposição seria um tabu. Ora, em momento algum da ADPF discute-se a questão do aborto em si, ou a disposição do corpo da mulher, ou mesmo a liberdade feminina de escolher ou não abortar, mas discute-se, exclusivamente, a questão do aborto de anencéfalos. Percebe-se, pois, que adentrar na questão de gêneros ou do início da vida humana é solapar-se em um terreno pantanoso, que ultrapassa os espaços dos possíveis, sendo pois, negligenciado, e, até mesmo, temido.
Dessa forma, dever-se-ia, buscar a ampliação dos espaços dos possíveis como forma de fomento a que questões reconhecidas como tabus, como a questão dos gêneros e do próprio aborto, sejam postas em xeque. Quanto a isso, observa Bourdieu que o campo jurídico está em constante mutação, em função da dialética social, não avançando, pois, por si mesmo, mas assimilando as alterações sociais. Assim, o caminho é árduo, mas ainda há uma luz a ser seguida.


 Nicole Bueno Almeida, 1º ano, Direito Noturno

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