segunda-feira, 9 de março de 2015

A exegese dos anencéfalos

O campo jurídico tem uma dinâmica específica que vai além da concorrência própria do campo político. Para Bourdieu, a sociedade está permeada por conflitos constantes em busca de poder. Para garantir a manutenção do poder, seus detentores buscariam camuflar seus interesses, velá-los de forma que aparentassem ser reflexo dos anseios da sociedade como um todo, através da violência simbólica. A figuração desses interesses como coletivos serve de justificativa para construções ideológicas.  
A pretensão de enquadrar o aborto de anencéfalos como crime previsto no código penal, é exemplo ilustrativo dessa violência simbólica, à medida que busca utilizar da estrutura da religião para construir um consenso sobre a realidade, ainda que tal posicionamento ignore a laicidade do Estado. 
O Direito deve tornar-se uma ciência diversa do que se considera como ciência jurídica. O direito enquanto restrito à ciência jurídica apresenta a característica do instrumentalismo e formalismo, tornando-se ferramenta de dominação, uma construção teórica que afasta o direito da realidade social, torna-se um campo autônomo e a apartado. 

A partir disso, Bourdieu trata da relevância da divisão do trabalho jurídico, enquanto atividade de interpretação filosófica e literária do jurista. No caso em tela, fica evidente a atividade hermenêutica realizada pelos ministros, que expandiram a efetividade e o alcance da norma. Ao mesmo tempo, os juristas se atentaram para a definição civil, jurídica sobre a vida- a lei não determina quando ela começa, mas quando termina. Podemos perceber que a atuação dos ministros se deu dentro do "espaço dos possíveis".
Outro aspecto observável na ADPF 54 é a ilusão sobre a independência do Direito em face das pressões políticas e sociais através das entidades religiosas e da própria formação de personalidade dos ministros ao trazer fundamentação para seus argumentos. A construção dos votos revela o habitus travestido com tecitura científica e o léxico próprio do campo jurídico, reflete os valores éticos e morais considerados legítimos dentro do campo, como a racionalidade, a ciência, a lógica. A partir disso é possível identificar os valores dominantes no campo jurídico, que se pretendem sempre neutros, a expressão da vontade pública. 

A argumentação no julgado é fortemente científica, revela dados numéricos e de diversas áreas da medicina, especialistas em reprodução e em comportamento e a constante lembrança da dignidade da pessoa humana, que dentro do campo jurídico é um valor fundamental e muitas vezes preponderante em relação a outros princípios. 


Gabriela Passos Ramos Alves  1º Diurno

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