segunda-feira, 9 de março de 2015

A ADPF 54 sob a óptica da teoria de Burdieu

      Pierre Burdieu, em sua obra ‘’ O Poder Simbólico’’, defende a ideia da existência dentro da organização social de vários campos com diferentes características, cada qual com seu devido significado e poder simbólico. Tais campos não são completamente autônomos, e se inter-relacionam. O Direito, como não poderia deixar de ser, é um desses. É claro, tal definição é apenas uma síntese extremamente resumida do conteúdo da obra, porém suficiente para compreender as ideias principais em relação à problemática do caso proposto.  
      A ADPF 54, proposta pela CNTS, tinha como pretensão reconhecer a possibilidade de constitucionalidade do aborto de fetos anencéfalos. Tal tema, levando-se em conta que trata de objeto extremamente delicado e com opiniões divergentes no seio da sociedade, não pode ser analisado somente sob um prisma estritamente racional e formal, onde apenas a letra da lei e os princípios jurídicos são considerados. Como já citado anteriormente, segundo Burdieu, o Direito, que é um campo da sociedade como qualquer outro, não é autosuficiente, e está sob constante influencia das pressões sociais. Portanto, para a resolução de tal questão torna-se necessário uma análise abrangente em relação às temáticas envolvidas, tanto no âmbito jurídico, como no científico, religioso, moral e outros.
      Tal análise, que definiu pela constitucionalidade do processo de aborto na situação em questão, foi realizada de forma acertada, pois exprimiu com sensatez e bom senso o pensamento mais condizente com princípios éticos e de justiça, considerando o sofrimento em vão pelo qual milhares de mães seriam obrigadas a passar todos os anos para gerar um feto sem perspectiva de desenvolvimento como pessoa, por mera questão de um receio social em ultrapassar certos tabus instituídos historicamente.
      A decisão representa um equilíbrio entre o caráter formal e instrumental do Direito, como já descrito por Burdieu, e outras do mesmo teor vem sendo proferidas de forma crescente pelo Judiciário, o que talvez mostre uma interação cada vez mais evidente entre o Direito e os outros campos sociais. Resta saber se o fortalecimento de tal interação irá se mostrar benéfica no futuro, ou se irá glorificar Kelsen, que já alertava sobre o perigo em se analisar o jurídico por prismas não jurídicos.

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