sábado, 17 de maio de 2014

E A Vida Imita a Má Televisão

    Naquela manhã, acordou sem pressa. Escovou os mesmos dentes, lavou o mesmo rosto, e entre enxaguada ou outra viu pelo espelho o reflexo da passagem do tempo: as rugas, a barba embranquecida e o retrato da falta do ócio, coisa incutida pela criação, coisa com o que não se discute, coisa que... Oras, era coisa dita e feita, tal dizia seu pai antes de “morrer pela pátria” na Segunda Guerra Mundial, defendendo sua Itália fascista.
    Contra toda e qualquer mudança que visse, era um desses Joões ou Josés que nunca haviam saído da risca que certamente lhe era verdade desde a infância. Um copo de leite e dois pães desde os dez anos; óculos de seis graus desde os quinze; um lugar no assento de motorista, do mesmo ônibus na linha principal da pequena cidade – isso desde os vinte. Não que lhe parecesse o melhor trabalho do mundo, porque nunca foi, mas pagava as contas e até permitia sua sagrada taça de vinho do sábado, quase um ritual. Talvez o comodismo e a aversão à novidade o fizessem pensar assim.
    Completava sessenta naquele dia. Odiava também aniversários. Na verdade, contava nos dedos de uma mão as coisas por que nutria algum prazer, e o vinho do sábado era um deles. Não amou, não se casou sequer por conveniência, não teve filhos e passava longe de cachorros nas ruas, mas sem acreditar que ignorá-los fizesse algum mal à sociedade. Não lia, livros ou revistas, assistia a programas ruins da TV e absorvia, sem digerir, qualquer informação proferida em qualquer um dos canais de grande audiência. Votava desconhecendo, conhecia o raso e rasas eram suas esperanças numa nação que, segundo algumas fontes, estava perdida.
    Se soubesse de Sociologia, talvez se entendesse por certos traços de Durkheim e seu Fato Social. Talvez entendesse por que não faltava às missas, talvez entendesse por que trabalhava, talvez até explicasse o por quê de aplaudir os “justiceiros” ante a “falta de aplicação da Justiça no Brasil”, por que mantinha seus “pequenos preconceitos” diários e dormia sereno para acordar disposto no dia seguinte, afinal, todos têm sua função social. Brindou a um dos homens que amarrou um jovem ao poste, ou que linchou uma mulher em alguma cidade por aí... Sequer saberia onde pois, bem, não lhe importavam as circunstâncias desde que a conclusão fosse a ideal, sob seu ponto de vista.
    “Bandido bom é bandido morto”, dizia, e acabou por ouvir isso no fim daquele dia, quando voltava à sua casa, de um rapaz que o sentou ao meio-fio e lhe tapou a boca com uma flanela, cobrando-lhe um ato que, embora nunca houvesse cometido, julgara outras tantas vezes pela TV. Tentava gritar a quem lá estivesse que haviam pegado o homem errado, mas não faria diferença se “não importavam as circunstâncias desde que a conclusão fosse a ideal”.
    E talvez ele tivesse aplaudido também uma cena dessas... Contudo, naquela noite, não foi audiência do jornal das oito.  

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