segunda-feira, 13 de maio de 2013

Comunidade, Identidade, Estabilidade



Em 2540, a vasta maioria da população vive unificada num Estado totalitário em que a paz reina eternamente, a sociedade é absolutamente estável, os recursos são infinitamente abundantes e todos – sim, todos, sem exceção – são felizes. Parece bom? Essa é a realidade retratada pelo brilhante americano Aldous Huxley em sua obra prima Admirável Mundo Novo.O livro foi lançado no longínquo ano de 1931, e fica mais assustador conforme os anos passam e se percebe que nossa sociedade se assemelha cada vez mais com a distopia retratada por ele. A discussão nesse texto, no entanto, não é exatamente essa; será feita uma breve análise da função e da aplicabilidade dos fatos sociais descritos por Durkheim no indivíduo e na sociedade huxleana. 

Em Admirável Mundo Novo todos os cidadãos são gerados em provetas de laboratório, de maneira que são desde antes de nascer moldados para se adequarem à casta que foram designados. O tipo de coerção exercida pelos fatos sociais na obra vai muito além de hábitos e costumes intrínsecos à sociedade, eles tornam-se coerções químicas, psíquicas e até mesmo físicas. Como no mundo de hoje, por exemplo, altura é um atributo de beleza, portanto na obra os indivíduos das castas mais inferiores recebem dentro do útero artificial inibidores que previnem um crescimento correspondente a outra casta. Uma vez fora do útero, os bebês passam por um seríssimo processo de doutrinação – para não dizer lavagem cerebral. O intuito dessa doutrinação é fazer com que os novos cidadãos não só aceitem sua condição – seja lá qual for – mas amem-na de maneira genuína. É claro que numa sociedade alguns indivíduos terão que exercer tarefas de certa forma indignas, e o processo de doutrinação é responsável por fazer com que as castas designadas a essas tarefas não sintam-se desfavorecidas, muito pelo contrário aliás. São colocados durante horas em um ambiente em que são obrigados a ouvir dezenas de milhares de vezes frases como “A casta Delta, minha casta, é a melhor casta que existe.”

Um bebê cuja profissão fosse ser de catador de lixo ouviria “Ser catador de lixo é a tarefa mais nobre que um ser humano pode exercer, tenho muita sorte de ter essa oportunidade.” Huxley escancarou o fato social na cara do leitor. No caso do catador de lixo, ainda que seja uma tarefa importante, por limpar a cidade, melhorar o ar que respiramos e a aparência da comunidade, hoje na nossa sociedade essa é considerada uma tarefa pouco honrosa, isso não é no entanto nos ensinado dogmaticamente, é algo que se aprende hodierna e subconscientemente. O condicionamento social é contínuo, ocorre durante toda a vida do indivíduo. Existem jornais específicos para cada casta, em que cada indivíduo tem a oportunidade de ouvir o que quer/precisa ouvir. O mesmo ocorre na nossa sociedade hoje, existem informativos de cunho popular e de cunho mais culto, ainda que a divisão de castas não seja aberta como na obra.

Um dos aspectos mais interessantes do livro é a maneira como os indivíduos se relacionam com o prazer. O sexo é incentivado abertamente em todos os níveis da sociedade, e não tem nenhuma conotação reprodutiva; todos os cidadãos recebem cotas semanais de uma droga do Estado chamado SOMA, que lhes proporciona êxtase indescritível. Na nossa sociedade hoje, é inimaginável que, como na obra, se incentivasse crianças a investigar mais a fundo sua curiosidade sexual. No entanto, na obra, o inimaginável seria o oposto. Isso ocorre porque em ambas as sociedades – a huxleana e a nossa – os indivíduos foram condicionados pelos fatos sociais a, no primeiro caso, ter atividade sexual desde a infância, e no segundo caso, a se evitar tocar no assunto.

O aspecto coercitivo do fato social, que faz com que ele sobressaia-se ao indivíduo é visível nesse caso. Qualquer criança que, por exemplo, demonstre na escola interesse – ainda que certamente por pura curiosidade inocente – no órgão sexual de outra criança é reprimida, e os pais da criança certamente são avisados do ocorrido, e é esperado deles que tomem as devidas medidas para que isso não volte a ocorrer. A criança teve interesse, e o fato social interviu como se dizendo-lhe “Você não pode fazer isso.” Ao mesmo tempo, na sociedade huxleana uma criança que não tivesse a menor curiosidade no assunto seria literalmente forçada a se interessar. Algo semelhante ocorre no filme The Wall do Pink Floyd, em uma cena em que o professor zomba do aluno que estava escrevendo poemas na aula e logo em seguida começa a dogmaticamente ditar regras matemáticas para seus alunos reproduzirem. Nos três casos, os fatos sociais tem a função de manter a ordem, de não chocar, de manter as coisas como estão. Na nossa sociedade eles são velados e camuflados, mas estão intrinsecamente presente em cada ditado, em cada hábito, e cada costume, em cada olhar repreensivo dos pais e dos professores, em cada congratulação. Na sociedade de Huxley eles estão escancarados, por isso a análise é mais fácil.

Comunidade, Identidade, Estabilidade. Esse é o lema do Estado da sociedade huxleana. Muitas das insatisfações são oriundas de conflitos entre desejos pessoais e os fatos sociais. A sociedade dita uma regra, mas sua mente dita outra, e esse conflito gera infelicidade. Os fatos sociais são um moedor de carne invisível, moldando seus indivíduos para que pensemos todos iguais e ajamos todos iguais. Qualquer pedaço de massa que sobressaia ao molde é impiedosamente retirado como um câncer social. Como foi dito no primeiro parágrafo, absolutamente todos os indivíduos da sociedade huxleana são plenamente felizes, visto que os fatos sociais são diferentes para cada casta. Talvez para nós seja inimaginável incentivar crianças a terem interesse sexual, mas acharíamos absolutamente normal caso tivéssemos nascidos nessa sociedade e tivéssemos aprendido dessa maneira desde cedo. Interpretando o lema do Estado huxleano, pode se dizer que nossa Comunidade é uma só, mas existem inúmeras Identidades, que quando diferem da padrão devem ser oprimidas em prol da Estabilidade. Por isso é de extrema importância que a casa e a escola sejam ambientes de reflexão, e não de reprodução; que pais e professores ensinem não o que pensar, mas como pensar, de forma que a criança não seja apenas mais um tijolo no muro social.
 
Por Lucas Omer Severen Surjus
1º Ano de Direito Diurno


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