domingo, 25 de novembro de 2012

Zonas de (des)contato







 A modernidade já fora velada. Somos, hoje, fetos dinâmicos da hipermodernidade tal qual Lipovetsky anuncia e enuncia.
Desde o império do relógio ao tecido das vestes mais famigeradas há razão. Não uma razão qualquer, mas um espectro onipotente e onipresente , vagante em busca da construção do eu ao aquele.
Não há escolha, vivemos, talvez desde Bacon, uma desconstrução velada dos princípios culturais que nos circunscrevem. A burocrata-racionalização weberiana cria uma zona de contato latu sensu na qual o império do status quo burguês solidifica a tese, suprimindo a antítese e estagnando a possibilidade de síntese.
Antes de discorrermos sobre o enunciado supracitado cabe-nos definir o conceito de Zonas de Contato norteados pelo definição lúcida de Boaventura. Tais zonas seriam espaços, sejam eles fisicamente tangíveis ou fluidamente transcendentais, nos quais ocorrem entrepostos socioculturais que se gladiam. O resultado do combate analisado de forma otimista culmina num processo dialógico de reorganização das constelações fragmentadas dos princípios conflitantes.  O resultado comum é o império violento de um dos princípios ou ordenamentos sobre o(s) outro(s).
Retomando a análise conjuntural, diante do imperialismo capitalista à essência (precedida pela existência e desvirtuada pelos “outros”) chegamos ao direito como ente colaborador dessa (des)construção.
É na área penal que encontramos os maiores exemplos dessa sinistra inter-relação. A contemporânea finalidade única da pena é isolar elementos de contracultura no depósito do cárcere. Punimos aqueles que a sociedade já condenou a exclusão social por simples manutenção da cultura vencedora na disputa ocorrida na zona contatual.
Boaventura, ainda a respeito da Zona de Contato define quatro tipos de sociabilidade: a violência, a coexistência, a reconciliação e a convivialidade. Dentre elas, destacaremos a de violência e a de reconciliação.
A primeira consiste  em um ponto de embate entre culturas diferentes na qual uma se sobreporá a outra. Possuirá algum tipo de respaldo e legitimidade. Ao passo que as outras culturas serão submetidas, marginalizadas e até excluídas por essa dominante. E é exatamente nessa conjuntura que nos encontramos desde a Revolução Industrial.  A supracitada razão presente no império do relógio, pérfida aos clamores da poesia de Mário Quintana¹, se fez essencial para que a cultura burguesa, na mais perfeita metáfora do processo de fagocitose na Biologia, se tornasse consistente o suficiente para “englobar” e “digerir” outras culturas. As intervenções insistentes da contracultura, materializada, por exemplo, nos “versos” de “beba coca cola” (1957)² e na imagem de “lixo-luxo”³ da poesia concreta, não foram capazes de efetivamente conter os grandes símbolos da cultura burguesa: um dos dias mais naturais em nosso cotidiano é aquele em que vamos a um shopping conjugado a um hipermercado famoso mundialmente, compramos vários artigos – pelo menos um jeans -  “batizados” com os nomes das grandes marcas – produzidas, claro, por multinacionais, uma vez que as nacionais não resistiram à concorrência e sucumbiram - nem sempre por necessidade, e, felizes, nos dirigimos ao fast-food mais próximo para saborearmos a última iguaria propagada pela Internet do smartphone, acompanhada, é claro, de uma Coca-cola tamanho grande. Enquanto comemos, acompanhamos, em primeira mão, após a retirada de capital do país X, o aprofundamento de sua crise, o que também influenciou na cotação do dólar.
Ademais, enfatizando exemplos menos genéricos desse tipo de sociabilidade,temos a partilha da África com a consequente formação de fronteiras artificiais. Ou seja, a corrida europeia por colônias foi pautada numa espécie de agrupamento de diversas tribos e etnias diferentes afim de enfraquecê-las e facilitar sua dominação. Nesse mesmo caminho da partilha africana, podemos destacar o que a Bélgica fez em sua parte fomentando a disputa entre tutsis e hutus na Ruanda. Os belgas apoiavam os tutsis no poder, dando-lhes legitimidade para o domínio dos hutus.
Uma outra espécie de sociabilidade violenta pode ser exemplificada pelo caso dos índios Guarani-Kaiowá que entram em conflito com posseiros e latifundiários para defender a sua “terra ancestral”. São condenados ao esquecimento pelas autoridades brasileiras e seus direitos estão sendo totalmente desrespeitados pela negligência estatal que legitima o domínio desses posseiros.
A escola sociológica da Subcultura delinquente também se enquadra nessa zona de contato, pois basicamente ocorre quando os jovens de periferias que crescem com determinados costumes e valores são mandados para escolas onde prevalecem os valores da classe média que conflitam com os seus. Isto é, de uma hora para a outra o que era certo, agora é proibido e assim por diante.
O segundo tipo de sociabilidade abordado - o de reconciliação - terá como mote a justiça restauradora. Defenderá o reconhecimento e a posterior pseudorestauração dos erros passados. Não visa promoção de mudanças profundas, ou seja, a ordem (status quo) continua a mesma. O poder adquire “novas capas”. Os Donos do Poder mantêm a designição e as classes desfavorecidas permeam-se por um processo de eufemização do déficit conjuntural provido pelo Estado Democrático de Direito.
A melhor maneira de sanar antigas ofensas e agravos obviamente não é aquela que de certa forma é imposta, fazendo com que as partes sejam obrigadas a conviver em “harmonia” um tanto quanto forçada. É dessa forma que se dá o processo de cotas no Brasil, dando-se enfoque no sistema recém aprovado de cotas para vagas em universidades públicas. A grande historicidade de preconceito racial é algo que perdura desde o tempo da escravidão até os dias de hoje, e embora haja negação, de que o preconceito não existe e não se perpetua, é bem claro que se mantém de forma bem intensa no imaginário das pessoas.
Agora com a possível entrada efetiva de negros nas Universidades não há mais como brancos e negros não entrarem em contato, eles estarão vivendo em um mesmo ambiente, compartilharão um mesmo vínculo social. Entra aí a ideia de reconciliação: o governo cria uma forma de justiça restauradora para sanar as desigualdades e preconceitos de muito tempo, entretanto isso não quer dizer que a partir de então o preconceito deixará de existir e que os negros deixarão de sentir-se oprimidos, deixarão de sofrer. Há, portanto, uma reprodução do preconceito sob uma nova forma, afinal a relação entre negros e brancos se dará sob uma lei, sob a imposição de um direito, sem que surgisse de uma forma natural, através da solidariedade, da compreensão.
Sem mais delongas, o tempo e a tipologia textual nos imputa à concluir. A pluralidade de constatações abordadas ao longo do texto, assim como a fotografia de Salgado, causam um monocromático desconforto. Poderia, como o leitor possivelmente anseia, sugerir medidas concretas para solução emediata dessas desventuras,mas não as vejo e me comprometo com a veracidade do que redijo. O caráter emancipatório do direito, assim como a almejada síntese nas zonas de contato dependem mais de uma reformulação socio-conjuntural coletiva do que de medidas isoladas e por conseguinte paleativas. Proponho a problematização individual de viés altruísta na concretização conjunta de forma que essa vá de encontro ao todo coletivo. Oras, seria pedir muito?


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¹  Algumas poesias do modernista Mário Quintana (1906-1994) tratavam sobre a fugacidade do tempo, fato exemplificado em sua conhecida frase “O tempo é um ponto de vista dos relógios”.
 
² PIGNATARI, Décio. Beba coca cola.
Disponível em:
Acesso: 25/11/2012
"Beba coca cola" é um poema pertencente ao movimento da Poesia Concreta, no qual a imagem do poema também é carregada de significado.


³ CAMPOS, Augusto.
Disponível em:
http://nossabrasilidade.com.br/wp-content/uploads/2012/02/luxolixo.jpg
Acesso em: 25/11/2012
É um poema também pertencente ao movimento da Poesia Concreta.

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TEMA: Direito nas Zonas de Contato: violência/reconciliação

GRUPO (noturno):
Carolina Meneghello
Jéssica Thaís de Lima
Júlia Godoi Rodrigues
Pedro Henrique Valdevite Agostinho



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