domingo, 16 de setembro de 2012

Legitimidade do Direito restitutivo e seu caráter cartesiano


            A obra “A divisão do trabalho social”, de Émile Durkheim, trás as explicações sobre a transformação histórica e social do Direito em relação aos sistemas de penas. Inicia com o fenômeno da consciência coletiva, que mantém o Direito punitivo e os dogmas culturais como defesas sociais, e finaliza com a “solidariedade orgânica”, criada a partir da divisão do trabalho e do nascimento dos direitos humanos como base para o Direito restitutivo, arma técnica de defesa dos direitos coletivos.
        O filme “Código de Conduta” revela-se influenciado por esses dois aspectos supracitados do Direito contemporâneo. O personagem Clyde, que testemunha o assassinato brutal de sua família, busca por longos anos a justiça baseada na punição passional dos criminosos e acredita expressamente que qualquer júri popular iria apoiá-lo. Estão claros os dogmas da consciência coletiva invocados por Clyde nesse desejo por uma sanção extremista. Em outro lado, há o promotor de justiça Nick, que aplica indiscriminadamente as técnicas racionais das normas do Direito, buscando provas incontestáveis do crime para punir de forma “justa”, ou seja, de acordo com a lei. Este é o reflexo do Direito restitutivo, o uso das ciências para resolver transgressões sociais gravíssimas. A grande questão abordada pelo filme é a legitimidade dos atos praticados pelo personagem Clyde, que após ver o assassino de sua filha ganhar a liberdade, tem sucesso em acabar com a vida de grande parte dos envolvidos no processo, dos criminosos aos funcionários públicos, revelando-se um sociopata que coloca todos os cidadãos em risco.
            O fracasso das técnicas científicas utilizadas pela justiça para aplicar sanções aos culpados desencadeou, no filme, uma reação passional de enormes proporções. A produção cinematográfica deu aos personagens o destino que melhor coube a uma arte de entretenimento com fins lucrativos. Entretanto, trazendo a discussão para nível da realidade brasileira, seria “melhor” uma justiça restitutiva ou punitiva? O fator “nenhuma justiça”, que podemos entender como a falha do sistema de justiça em casos que houve crime, encadearia reações destrutivas como no longa – metragem ou não?
            O termo “melhor” empregado na questão acima é carregado de subjetividade, porém devemos nos deter aos princípios morais que vigoram dentro do caráter do alvo das críticas aqui encontradas: o ordenamento jurídico vigente. De acordo com suas normas, o “melhor” traduz-se nos direitos garantidos pela Constituição Federal: os direitos humanos, fundamentais, protetores da dignidade humana. Assim, o Direito restitutivo mostra-se como melhor opção para a garantia do bem-estar coletivo, sopesando os valores do indivíduo em prol de seus direitos e da sociedade, como vemos em vários casos dentro do Direito, por exemplo, quando a boa-fé é levada em conta, mesmo em caso de erro. É claro que a eficácia da ciência aplicada no Direito, da racionalização das decisões judiciais, nem sempre garantem o que é “justo”, ou seja, o que está previsto em lei, problema este tratado no filme “Código de Conduta”, todavia, se um órgão estatal não se empenhar em executar suas regras de forma a enquadrar-se em uma limitação estabelecida, teríamos uma grande insegurança jurídica e problemas sociais ainda maiores.
A expressão “nenhuma justiça”, ligada pelo filme ao fracasso do direito restitutivo, deve ser rechaçada pelas leis de um país, principalmente o Brasil, no qual encontramos uma Constituição analítica, minuciosamente produzida para englobar a conduta dos indivíduos, e um alto índice de crimes, como o homicídio. É possível a existência reações destrutivas devido às falhas do processo restitutivo, contudo elas não são e nunca poderiam ser legítimas. São, na verdade, desvios tanto da conduta ética normatizada pelas leis, caracterizando assim atos passiveis de sanção, quanto da conduta social dos bons costumes, que, além de se fazer presente no Direito, é mais ampla e extremamente defendida pela maioria da população. O desenvolvimento do Direito restitutivo acompanha as necessidades da sociedade e deve ser seguido pelos órgãos responsáveis pela justiça. Com relação ao filme “Código de Conduta, a punição tanto aos assassinos da família de Clyde quando aquela aplicada a ele, baseada no ordenamento jurídico vigente, é legítima e “justa”, defende os direitos do cidadão e da sociedade.
Em uma segunda análise, podemos trazer à tona, dentro da realidade brasileira, a questão da substituição do Estado de bem-estar pelo Estado de controle, ou seja, uma maior preferência pela punição aos transgressores do que o investimento em prevenção. O Professor Sérgio Salomão Shecaira (já citado por mim em postagem anterior) defende que as penas e o sistema carcerário brasileiro não pretendem restituir o individuo a sociedade, como é defendido pelo direito moderno, e cada instituição que forma o sistema punitivo brasileiro e seus profissionais mantém distanciamento em relação aos autores de crimes (artigo “A Lei e o Outro”). O “encastelamento” dos juristas entorno das normas, expressão utilizada pelo Professor Shecaira, impede a criação de novos métodos de se aplicar a lei e também a busca pelos princípios básicos do Direito. O aspecto cartesiano da aplicação técnica das leis, a matemática do Direito restitutivo, está presente, em relação ao filme já citado, na atuação do promotor de justiça, que procura condenar os acusados da forma mais direta possível, sem se influenciar de forma definitiva pelos apelos emocionais de Clyde. A renovação do Direito, nesse caso, foi anulada pela normatividade das decisões e seu engessamento pela ciência. Está claro que a utilização do Direito restitutivo é a evolução do Estado de Direito, entretanto deve-se abrir caminho para as novas ideias de cunho social que auxiliem a estruturação do Estado de bem-estar.
O seguinte trecho foi retirado do artigo “A opção pelo calabouço”, do Professor Shecaira, e prova que a preferência pela punição é causadora do Estado de controle e revela que os gastos com o excesso de punições interferem nos investimentos em ações sociais.
Algumas dimensões da substituição do Estado de bem-estar pelo Estado de controle devem ser destacadas. Houve uma expansão vertical por meio da hiperinflação carcerária (meio milhão no Brasil); houve uma expansão horizontal de pessoas sob controle (milhares de pessoas cumprem penas alternativas em nosso país); há um crescimento notável de dotações orçamentárias prisionais em detrimento dos gastos sociais; há uma espécie de "ação afirmativa carcerária", isto é, pobres e negros estão mais representados na população carcerária do que a elite branca; houve uma universalização desse fenômeno, pois foi uma constante em várias nações.

REFERÊNCIAS:

Shecaira, Sérgio Salomão. “A Lei e o Outro”. Disponível em: < http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/20/Documentos/Artigos/00000030-001_SergioShecaira.pdf>. Data de acesso: 16 de setembro de 2012.

Shecaira, Sérgio Salomão. “A opção pelo calabouço”. Disponível em: < http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,a-opcao-pelo-calabouco,672745,0.htm>. Data de acesso: 16 de setembro de 2012.

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