sábado, 20 de agosto de 2011

Costurar o filtro

Émile Durkheim acreditava que a modernidade seria erguida sobre uma base hiper-racional que propiciaria o funcionamento equilibrado da sociedade. O sociólogo afirmava que uma consequência natural da racionalização seria a ruptura entre consciência coletiva e metafísica. Ele pensava que a modernidade filtraria a história e reteria as paixões no passado.

No entanto, o “filtro” da modernidade apresentou diversos buracos que permitiram a passagem de aspectos primitivos para os dias atuais. As paixões não ficaram retidas, mas fluíram para a modernidade.

Tal fato pode ser comprovado através de uma simples análise da nossa sociedade, na qual encontramos constantemente a dialética do arcaico e do moderno. A questão da homossexualidade, por exemplo, não deve causar polêmica em uma sociedade embasada na racionalidade, uma vez que não atrapalha o meio social nem a produção, ou seja, não produz impacto socioeconômico relevante. Somente uma sociedade primitiva marcada pela carência de racionalidade na forma de interpretar as ações sociais, caracterizada por um moralismo hipócrita e influenciada intensamente por dogmas religiosos é capaz de destinar grande importância à opção sexual dos outros.

Ocorre que a nossa sociedade, infelizmente, adequa-se ao primeiro perfil, já que demonstra forte apego, com escassas exceções, a escolhas individuais que não geram reflexos no coletivo ao invés de se preocupar com questões que realmente ferem interesses materiais como a corrupção; a precariedade dos sistemas educacional público, de saúde e de transporte; entre tantos outros.

É, no mínimo, triste constatar que o avanço tecnológico-científico não foi seguido pelo desenvolvimento do modo de perceber a sociedade. Em oposição à globalização e às inovações está a restrição da mente que continua, em muitos aspectos, medieval e conservadora. Dessa forma, é possível verificar que a racionalidade permeou superficialmente a vida moderna, ficando restrita a certos setores produtivos e não atingindo visceralmente o homem contemporâneo.

Em relação ao Direito, a manutenção das paixões é imensamente prejudicial, já que freia ações jurídicas que, por essência, devem ser racionais. Por exemplo, a liberdade de crença religiosa só é realmente verdadeira em um Estado laico; pois apenas este, desvinculado de religião, é capaz de ser racional o suficiente para legitimar tal direito.

Em muitas situações, o Direito é, até mesmo, deixado para segundo plano. Basta observar a idolatria destinada ao Capitão Nascimento, de Tropa de Elite. Na nossa sociedade, não são poucos aqueles que apoiam o “pede pra sair” ou o “coloca no saco”; isto é, o tratamento passional em detrimento do racional, representado pelo Direito.

Vale ressaltar ainda que questões que se relacionam com as paixões, principalmente, com os dogmas religiosos são entraves difíceis de resolver. Por exemplo, as pesquisas com células-tronco, a união homoafetiva, o aborto, a eutanásia, etc.

Faz-se necessário, portanto, costurar o “filtro” da modernidade para evitar que a vida seja fundamentada em uma perspectiva primitiva que desestabiliza o equilíbrio social, na medida em que edifica intolerância, discriminação, opressão e conflito. Durkheim desejaria que a racionalidade fagocitasse as paixões a fim de eliminar polêmicas irrelevantes para o funcionamento saudável da sociedade contemporânea.

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