quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

A ADI 6987 e a necessidade de penalização do racismo

A persistência do racismo na sociedade se dá de diversas formas, até mesmo na aplicação dele na legislação brasileira. Isso porque surgiu, nesse contexto, a injúria racial como algo factual na realidade do país, a qual se aplica quando um indivíduo usa-se de critérios raciais, relacionados a quaisquer minorias étnicas para ofender a honra da vítima. Em contraposição, sabe-se que existe o crime de racismo, o qual é dado como inafiançável e imprescritível, a fim de criar uma maior atenção à problemática dada por esse na sociedade, algo que se relaciona diretamente com a forma que primeiro implica na descredibilização dessas minorias. Para tanto, a criação da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6987 deve ser destacada por ser pleiteada pelo partido político Cidadania a fim de se equiparar a injúria racial ao racismo, baseando-se no fato do país ser estruturado pela desigualdade racial. 

Nesse sentido, deve-se analisar, inicialmente, pelo viés sociológico de Bourdieu, qual destaca que existe um espaço dos possíveis, dado pela garantia de certos a apenas certas parcelas populares. O que se classifica, portanto, é que essa ADI se dá por saber que a  manutenção da existência de injúria racial implica menor valoração àquilo que seria um crime com caráter etnológico, restringindo esse espaço do autor apenas a brancos. Sabe-se, ainda, que, por ser imprescritível, o racismo apresenta-se como um crime com maior ênfase na sociedade, tendo maior implicação em suas consequências e penas, para que seja mais eficaz sua mitigação, uma vez que a estruturação da sociedade brasileira é fomentada em séculos de discriminação de cunho racial. Além disso, Garapon destaca que a busca pelo judiciário como meio de decisões deve ser feita em última instância, uma vez que se esse deve ser destinado aos problemas sociais mais influentes, forma na qual pode-se caracterizar o racismo, pois diz respeito à grande parcela brasileira.

Ademais, é necessário usar os ideais de McCann para elucidar acerca da mobilização do direito e suas consequências reais na sociedade. Dado que o meio social se mostra, na atualidade, fundado em um viés de exclusão racial, pode-se aplicar que outras formas de se pleitear a igualdade se mostram ineficazes, devendo se usar do direito para que exista meio que pretende não só demonstrar a problemática do preconceito racial, como também aquilo que permitiria a mitigação desse. Com isso, a mobilização do judiciário se mostra imprescindível, através da ADI, para a busca da igualdade e de uma melhor normatização de punições em casos de racismo.

Dessa forma, pode-se classificar, também, que Sara Araújo, em sua teoria, por se destacar o fato da predominância dos valores e dos conhecimentos dos países do Norte perante ao Sul, o que carrega uma viés etnico, uma vez que se considera os desenvolvimentos europeus como “supremos” em relação àquilo criado por outras regiões do mundo. Nesse contexto, o racismo se destaca pela descredibilização daquilo que não está de acordo com as noções fundamentadas pelos brancos, fazendo com que a estigmatização social das raças sejam mais facilmente vistas, assim como a marginalização. Por fim, traz-se que Mbembe explicita como o branco é visto como universal, de forma que precisa-se recorrer a algum método que permita a igualdade perante aos meios sociais, o que pode ser garantido através do direito, para que se proteja  aqueles que sofrem racismo.

Portanto, conclui-se que a ADI 6987 se dá como uma forma eficaz de se pleitear a igualdade racial, uma vez que pretende elevar a punição para injúria racial, associando essa ao racismo, o qual se dá como imprescritível e inafiançável. Com isso, entende-se, com o uso das diversas teorias expostas anteriormente, que existe a necessidade de se mitigar as disparidades raciais e que o direito deve funcionar como mecanismo de viabilização desse desenvolvimento no meio social.


Maria Julia Pascoal da Silva- direito matutino

 A Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.987 tratou sobre inconstitucionalidade da diferença de “ofensa a um indivíduo em sua honra subjetiva, por elemento racial” do crime de racismo. Desse modo, consistiria em um paradoxo a injúria racial não-racista, sendo necessário enquadrar a ofensa, como uma espécie de racismo. Nesse sentido, as ações passam a ser punidas de forma mais justa, tendo em vista que se tornaram imprescritíveis e inafiançáveis.

Apresentado o tema, o reconhecimento da injúria racial como racismo se encontra dentro dos espaços dos possíveis, de Pierre Bourdieu. Nesse viés, em razão do contexto de desigualdade e marginalização que os negros sofrem, no Brasil, ao longo de séculos, tal identificação se encaixa nas demandas sociais presente em todo o mundo. 

Ademais, com a participação do Movimento Negro e Movimento LGBTQIA+, tal marco foi concretizado. Isso espelha o que Garapon chamou de judicialização, um fenômeno político-social que visa representar os anseios do corpo social, especialmente os grupos mais marginalizados e que, por isso, possuem direitos violados. Dessa forma, a magistratura do sujeito, permite que o Direito seja mobilizado a fim de assegurar as garantias, neste caso, da população negra.

Diante disso, a ADI 6.987 permitiu, por meio do enquadramento da injúria racial como uma forma de racismo, observar a realidade por meio de uma perspectiva étnico racial, ou seja, de maneira que não representa o hegemônico, como dispõe Sara Araújo. Sendo assim, ainda sob a análise de Sara, a Ação avançou um passo para desmontar a monocultura que naturaliza as diferenças, para que aqueles que detém o poder simbólico não continuem desumanizando a população negra.


Contradições colonialistas

 

    No Capítulo V do atual Código Penal brasileiro, somos introduzidos aos diversos crimes contra a honra do indivíduo. Dentre eles, cita-se como exemplo a injúria racial, prevista pela artigo 140, § 3o, que prevê ao praticante reclusão de um a três anos e multa. O conceito de injúria racial baseia-se na ideia de uma ofensa dirigida a um único indivíduo em específico e, sob uma análise defeituosa, não atacaria todo um grupo social. Diferentemente deste, o crime de racismo, previsto pela Lei no 7.716, de 5 de janeiro de 1989, busca abranger as situações em que a ofensa é dirigida a uma parcela da população em geral, não a uma única pessoa. Entretanto, considerando a realidade histórica do Brasil – que ecoa na contemporaneidade – e a aplicação prática dessa diferenciação, observa como a definição de injúria racial é supérflua, visto que toda prática de “injúria” é uma manifestação racista do agressor.

    De início, tendo em vista a formação escravocrata de nosso país, o racismo estrutural é algo intrínseco a sociedade como um todo. Por meio dessa prática cotidiana, diversas condutas violentas contra a população negra são constantemente normalizadas e tipificadas. Nesse âmbito, não se pode diferenciar injúria racial de racismo, pois toda e qualquer ofensa direcionada a um indivíduo por conta de sua cor é reflexo de um comportamento influenciado por uma sociedade que cotidianamente ofende toda a parcela negra da população. Em outras palavras, não há diferenciação, porque, considerando nossas estruturas sociais, todo ataque provém de ideais enraizados na comunidade brasileira. Ademais, a diferenciação entre esses delitos acaba por favorecer unicamente os criminosos, visto que, para se defenderem perante a lei, seus respectivos advogados tendem a alegar que a prática criminosa condiz com o crime de injúria e não de racismo, visando uma pena mais branda para o desviante.

            É nesse cenário contraditório que, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6987, o partido Cidadania requereu ao Supremo Tribunal Federal (STF) o reconhecimento da injúria racial como espécie de racismo. Como já apresentado acima, acatar a solicitação do partido é essencial para combater o racismo estrutural brasileiro. À luz de diversos sociólogos, juristas e filósofos, a dissertação que se segue busca analisar a importância dessa equiparação para um Estado Democrático de Direito e como foi possível a ascensão desse debate, tendo em vista o racismo intimamente atrelado a população brasileira.

            De início, sob a ótica de Pierre Bourdieu, vale ressaltar como a constante luta da população negra vem alterando positivamente o espaço dos possíveis. Definido pelo sociólogo como tudo aquilo que se é realizável em um meio, o espaço dos possíveis é reflexo direto das dinâmicas sociais nele existentes, sendo estas, historicamente, as  mais intolerantes possíveis para com as minorias raciais. Entretanto, o espaço dos possíveis é delimitado pelo campo jurídico. Tendo por base que o referido pensador considera o direito como a junção da lógica positiva da ciência com a lógica normativa da moral, observa-se que o direito não será algo estático, visto que os parâmetros que definem a moral tendem a variar de acordo com o tempo e espaço em que se inserem. Assim sendo, levando em conta que o espaço é o de um Estado Democrático de Direito e que vivemos em um tempo de constante reconhecimento de direitos graças ao conflito entre os marginalizados e a ordem racista, é incabível a permanência de um sistema que busque amenizar um crime praticado há séculos contra essa parcela da população.

    Após a análise do pensamento de Bourdieu no contexto citado, passemos agora para o estudo das ideias de Antonie Garapon. Para o jurista, a plenitude da democracia é alcançada ao rompermos as amarras impostas pelos denominados magistrados naturais – comportamentos típicos de uma ordem retrógrada, como o machismo, a homofobia e o racismo – e recriar a organização social por meio do direito. Para superar os magistrados naturais, no entanto, é necessário que o sujeito exerça a magistratura de sua própria vida, ou seja, participe ativamente de batalhas que busquem o rompimento com a ordem natural. Nesse viés, nota-se que solicitações como a do Cidadania a respeito do racismo não são frutos de um mero “paternalismo judicial”, mas sim de uma luta constante que reflete o protagonismo dos agentes oprimidos nessas conquistas. Ademais, ainda no quesito de romper com a ordem vigente, decisões judiciais devem colaborar com os embates sociais travados por meio da antecipação do direito, isto é, devem pensar o direito como uma ferramenta de transformação social e não como um instrumento que reproduza e legitime atitudes discriminatórias que já se encontram enraizadas em muitos cidadãos. Na questão analisada, portanto, deve haver o reconhecimento da injúria racial como uma manifestação do racismo para que não haja a legitimação de condutas criminosas.

    Dando sequência, o foco da análise será agora o pensamento de Michael McCann a respeito do direito e sua função no meio em que está inserido. Consoante aos ensinamentos do professor, vivemos em um contexto marcado por um fenômeno denominado mobilização do direito. De acordo com seu conceito, essa é a mobilização dos próprios sujeitos de direito para reivindicar seus  interesses. Alinhado ao conceito já apresentado de magistratura do sujeito, ocorre aqui uma transição na ideia dos tribunais como os principais garantidores de direito, passando esse ofício para os agentes em si. Deste modo, mais uma vez se observa em como decisões judiciais, há exemplo da ADI analisada, são frutos principalmente de um cenário de instabilidades geradas por aqueles que reclamam seus direitos básicos e uma ordem de caráter opressora. Tais mobilizações exercem influência primeiramente no chamado nível estratégico, ao pressionar autoridades judiciais para que providências sejam tomadas, e, posteriormente, em nível constitutivo, que passa a adotar os decretos proferidos como parte da vida cotidiana – ou, caso haja resistência, há desde pressões exercidas pelo meio para exigir mudanças comportamentais até consequências penais, como no caso analisado.

    Por fim, cabe agora uma análise de conceitos da jurista Sara Araújo alinhados aos ideais do filósofo Achille Mbembe. Para ela, o direito, em sua forma pura, busca assegurar os ideais eurocêntricos em que foi embasado, gerando o que a autora define como uma “linha abissal” entre o norte e o sul, separação que vai muito além da geográfica. Nesse viés, não podemos estabelecer e manter princípios regidos por uma ordem colonizadora cuja realidade é completamente distinta da latino-americana, sob pena de cairmos na denominada monocultura do saber – o conhecimento adquirido de fontes eurocêntricas seria a verdade absoluta. Engatilhando para o pensamento de Mbembe, com base na obra “Crítica da razão negra”, as fortes bases colonialistas acarretam diretamente na permanência do racismo estrutural, já que vê aqueles que são diferentes do “modelo europeu” como inimigos em potencial. É nesse âmbito, pois, que é de extrema importância romper com as amarras históricas para se alcançar um resultado democrático no presente, já que “o mundo é diferente da ponte pra cá”.[1]

    Em suma, observa-se que, por conta do racismo estrutural presente na sociedade brasileira, consequência direta de seu passado escravista e por adotar o padrão europeu como molde, há a tentativa de mascarar uma prática criminosa. Deste modo, concluo reafirmando: solicitações como a da ADI 6987 são consequências diretas das lutas travadas pela comunidade oprimida. Ao pressionar a sociedade como um todo, os agentes sociais adquirem influência necessária para alterar os parâmetros do espaço dos possíveis e, por conseguinte, superar os magistrados naturais, fato que seria impossível sem a organização pela mobilização do direito e suas consequências na esfera social, política e jurídica. Somente rompendo com padrões colonialistas, atingiremos a plenitude de nossa democracia e cumpriremos a verdadeira função do direito.


Mateus G. F. de Souza

Turma XXXIX - Matutino


[1] Racionais MC’s: "Da ponte pra cá"

Dignidade humana

 Em 2021, foi impetrado no Supremo Tribunal Federal um pedido acerca da equiparação da injúria racial ao crime de racismo, atestando a incoerência da separação dos dois delitos e como isso poderia contribuir com a própria perpetuação do preconceito. Logo, aqui será perpassado e explicado a razão pela qual a sociologia jurídica concorda com esse posicionamento. 

Para entendimento da causa, deve-se ter em mente aquilo que Bourdieu afirmou em seus estudos acerca da influência da norma sobre o imaginário social, sendo a lei uma maneira de conscientizar as pessoas do que devem ou não fazer, já que, para muitos ainda, a letra fria da lei é sinônimo de moralidade. Assim, é possível perceber que distinguir os dois tipos penais  pode trazer à mente majoritária um erro comum: não saber verdadeiramente que está sendo preconceituoso. A injúria afeta um dos principais direitos humanos da Constituição, a saber, a dignidade humana. Alexandre Magno, um estudioso da área jurídica, afirma que este direito possui três premissas: a igualdade, os direitos de personalidade e a autonomia. Portanto, sabendo disso - que todos os três fundamentos são feridos de alguma forma-, como os dois ainda estão separados, já que os dois crimes são claras formas de discriminação e ataque ao âmago mais profundo da humanidade de um indivíduo? É bem perceptível que, acima de tudo, muitas vezes, o Estado tem como principal objetivo a dissolução da pessoa e inclusão desta em uma massa informe, desconhecida e despersonalizada. 


O STF, pela sua função de guardião da Constituição, infelizmente, comete sim ativismo judicial, pois interfere no poder legislativo, mas, de acordo com muitos juristas, esta seria uma ação necessária para reconhecimento de direitos.


Conclui-se, portanto, que a norma deve sempre tender ao bem comum e bem-estar social de todos, tentando ao máximo respeitar todas individualidades de cada ser humano e tornando as leis uma premissa para cumprir o dito pelo sociólogo Augusto Comte no século XIX, que “a humanidade tende ao progresso “.