quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Contradições colonialistas

 

    No Capítulo V do atual Código Penal brasileiro, somos introduzidos aos diversos crimes contra a honra do indivíduo. Dentre eles, cita-se como exemplo a injúria racial, prevista pela artigo 140, § 3o, que prevê ao praticante reclusão de um a três anos e multa. O conceito de injúria racial baseia-se na ideia de uma ofensa dirigida a um único indivíduo em específico e, sob uma análise defeituosa, não atacaria todo um grupo social. Diferentemente deste, o crime de racismo, previsto pela Lei no 7.716, de 5 de janeiro de 1989, busca abranger as situações em que a ofensa é dirigida a uma parcela da população em geral, não a uma única pessoa. Entretanto, considerando a realidade histórica do Brasil – que ecoa na contemporaneidade – e a aplicação prática dessa diferenciação, observa como a definição de injúria racial é supérflua, visto que toda prática de “injúria” é uma manifestação racista do agressor.

    De início, tendo em vista a formação escravocrata de nosso país, o racismo estrutural é algo intrínseco a sociedade como um todo. Por meio dessa prática cotidiana, diversas condutas violentas contra a população negra são constantemente normalizadas e tipificadas. Nesse âmbito, não se pode diferenciar injúria racial de racismo, pois toda e qualquer ofensa direcionada a um indivíduo por conta de sua cor é reflexo de um comportamento influenciado por uma sociedade que cotidianamente ofende toda a parcela negra da população. Em outras palavras, não há diferenciação, porque, considerando nossas estruturas sociais, todo ataque provém de ideais enraizados na comunidade brasileira. Ademais, a diferenciação entre esses delitos acaba por favorecer unicamente os criminosos, visto que, para se defenderem perante a lei, seus respectivos advogados tendem a alegar que a prática criminosa condiz com o crime de injúria e não de racismo, visando uma pena mais branda para o desviante.

            É nesse cenário contraditório que, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6987, o partido Cidadania requereu ao Supremo Tribunal Federal (STF) o reconhecimento da injúria racial como espécie de racismo. Como já apresentado acima, acatar a solicitação do partido é essencial para combater o racismo estrutural brasileiro. À luz de diversos sociólogos, juristas e filósofos, a dissertação que se segue busca analisar a importância dessa equiparação para um Estado Democrático de Direito e como foi possível a ascensão desse debate, tendo em vista o racismo intimamente atrelado a população brasileira.

            De início, sob a ótica de Pierre Bourdieu, vale ressaltar como a constante luta da população negra vem alterando positivamente o espaço dos possíveis. Definido pelo sociólogo como tudo aquilo que se é realizável em um meio, o espaço dos possíveis é reflexo direto das dinâmicas sociais nele existentes, sendo estas, historicamente, as  mais intolerantes possíveis para com as minorias raciais. Entretanto, o espaço dos possíveis é delimitado pelo campo jurídico. Tendo por base que o referido pensador considera o direito como a junção da lógica positiva da ciência com a lógica normativa da moral, observa-se que o direito não será algo estático, visto que os parâmetros que definem a moral tendem a variar de acordo com o tempo e espaço em que se inserem. Assim sendo, levando em conta que o espaço é o de um Estado Democrático de Direito e que vivemos em um tempo de constante reconhecimento de direitos graças ao conflito entre os marginalizados e a ordem racista, é incabível a permanência de um sistema que busque amenizar um crime praticado há séculos contra essa parcela da população.

    Após a análise do pensamento de Bourdieu no contexto citado, passemos agora para o estudo das ideias de Antonie Garapon. Para o jurista, a plenitude da democracia é alcançada ao rompermos as amarras impostas pelos denominados magistrados naturais – comportamentos típicos de uma ordem retrógrada, como o machismo, a homofobia e o racismo – e recriar a organização social por meio do direito. Para superar os magistrados naturais, no entanto, é necessário que o sujeito exerça a magistratura de sua própria vida, ou seja, participe ativamente de batalhas que busquem o rompimento com a ordem natural. Nesse viés, nota-se que solicitações como a do Cidadania a respeito do racismo não são frutos de um mero “paternalismo judicial”, mas sim de uma luta constante que reflete o protagonismo dos agentes oprimidos nessas conquistas. Ademais, ainda no quesito de romper com a ordem vigente, decisões judiciais devem colaborar com os embates sociais travados por meio da antecipação do direito, isto é, devem pensar o direito como uma ferramenta de transformação social e não como um instrumento que reproduza e legitime atitudes discriminatórias que já se encontram enraizadas em muitos cidadãos. Na questão analisada, portanto, deve haver o reconhecimento da injúria racial como uma manifestação do racismo para que não haja a legitimação de condutas criminosas.

    Dando sequência, o foco da análise será agora o pensamento de Michael McCann a respeito do direito e sua função no meio em que está inserido. Consoante aos ensinamentos do professor, vivemos em um contexto marcado por um fenômeno denominado mobilização do direito. De acordo com seu conceito, essa é a mobilização dos próprios sujeitos de direito para reivindicar seus  interesses. Alinhado ao conceito já apresentado de magistratura do sujeito, ocorre aqui uma transição na ideia dos tribunais como os principais garantidores de direito, passando esse ofício para os agentes em si. Deste modo, mais uma vez se observa em como decisões judiciais, há exemplo da ADI analisada, são frutos principalmente de um cenário de instabilidades geradas por aqueles que reclamam seus direitos básicos e uma ordem de caráter opressora. Tais mobilizações exercem influência primeiramente no chamado nível estratégico, ao pressionar autoridades judiciais para que providências sejam tomadas, e, posteriormente, em nível constitutivo, que passa a adotar os decretos proferidos como parte da vida cotidiana – ou, caso haja resistência, há desde pressões exercidas pelo meio para exigir mudanças comportamentais até consequências penais, como no caso analisado.

    Por fim, cabe agora uma análise de conceitos da jurista Sara Araújo alinhados aos ideais do filósofo Achille Mbembe. Para ela, o direito, em sua forma pura, busca assegurar os ideais eurocêntricos em que foi embasado, gerando o que a autora define como uma “linha abissal” entre o norte e o sul, separação que vai muito além da geográfica. Nesse viés, não podemos estabelecer e manter princípios regidos por uma ordem colonizadora cuja realidade é completamente distinta da latino-americana, sob pena de cairmos na denominada monocultura do saber – o conhecimento adquirido de fontes eurocêntricas seria a verdade absoluta. Engatilhando para o pensamento de Mbembe, com base na obra “Crítica da razão negra”, as fortes bases colonialistas acarretam diretamente na permanência do racismo estrutural, já que vê aqueles que são diferentes do “modelo europeu” como inimigos em potencial. É nesse âmbito, pois, que é de extrema importância romper com as amarras históricas para se alcançar um resultado democrático no presente, já que “o mundo é diferente da ponte pra cá”.[1]

    Em suma, observa-se que, por conta do racismo estrutural presente na sociedade brasileira, consequência direta de seu passado escravista e por adotar o padrão europeu como molde, há a tentativa de mascarar uma prática criminosa. Deste modo, concluo reafirmando: solicitações como a da ADI 6987 são consequências diretas das lutas travadas pela comunidade oprimida. Ao pressionar a sociedade como um todo, os agentes sociais adquirem influência necessária para alterar os parâmetros do espaço dos possíveis e, por conseguinte, superar os magistrados naturais, fato que seria impossível sem a organização pela mobilização do direito e suas consequências na esfera social, política e jurídica. Somente rompendo com padrões colonialistas, atingiremos a plenitude de nossa democracia e cumpriremos a verdadeira função do direito.


Mateus G. F. de Souza

Turma XXXIX - Matutino


[1] Racionais MC’s: "Da ponte pra cá"

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