quarta-feira, 2 de novembro de 2022

A Criminalização da Homofobia no panorama contemporâneo

        No dia 13 de junho de 2019, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a mora do Congresso Nacional, pleiteada, com eficácia geral e efeito vinculante, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, a qual criminaliza a homofobia contra os integrantes da comunidade LGBTQIA+ que possuem seus direitos fundamentais transgredidos pela discriminação perniciosa e pelos discursos de ódio. Nesse sentido, os Ministros do STF acordaram com a disposição relatada por Celso de Mello em enquadrar, de modo equiparado, a homofobia e a transfobia como tipo penal previsto na Lei do Racismo (Lei 7716/89). Dado o exposto, é notório fomentar essa discussão nos tribunais, tendo em vista a conjuntura nacional na qual o chefe de Estado, eleito pela vontade majoritária em 2018, incita o ódio e a aversão às demandas sociais não só por meio da contravenção às garantias fundamentais imanentes ao escopo constitucional, mas também através do cerceamento da liberdade individual da comunidade LGBTQIA+, negando, em sua gênese, a existência de seus representantes.

            Nesse diapasão, cabe mencionar que, de acordo com o voto da Ministra Carmen Lúcia, a omissão legislativa corrobora a inércia do legislador brasileiro e, consequentemente, seu hiato em protagonizar atuação tutelar do grupo diariamente vulnerável à estigmatização, à coerção física e moral e, por fim, à violência de índole homotransfóbica. Logo, haja visto o postulado no relatório do Ministro Celso de Mello, urge enquadrar os crimes de homofobia e transfobia na premissa ontológica-constitucional do racismo.

            No entanto, antes de vincular o caráter deliberativo da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26 às abstrações sociológicas do Direito, cabe analisar o contexto subserviente ao julgamento relatado por Celso de Mello. Sendo assim, o Mandado de Injunção 4733, impetrado pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), é respaldado pela premente indispensabilidade de criminalizar as ofensas atentatórias ao grupo LGBTQIA+, tendo em vista sua ressonância desde o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 122/2006, o qual teve Jair Bolsonaro como assíduo opositor. Em suma, o requerimento da impetrante, compreendido pelo adiamento do julgamento do mandado, foi concedido para ser arbitrado concomitantemente à ADO 26.

        A princípio, a investigação principiológica da criminalização da homofobia é permeada por embates dicotômicos nas esferas argumentativas. Entretanto, a título de elucidação do “espaço dos possíveis” pontuado por Bourdieu, é mister traçar um parâmetro comparativo entre o voto proferido pela União e a proposta defendida pelo Ministro Relator Celso de Mello. Desse modo, de acordo com o Governo Federal e antagônico ao relato do representante do Supremo Tribunal Federal, o writ supracitado é incabível: “a parte impetrante não pretende assegurar o exercício de um direito previsto na Constituição, mas objetiva um regramento específico, uma tipicidade especial para condutas de homofobia e transfobia” (...) “não há qualquer comando constitucional que exija tipificação específica para a homofobia e transfobia”. Já Celso de Mello reitera a urgência do mandado de injunção, haja visto sua finalidade de ser um artifício à ausência de uma norma regulamentadora vinculada ao exercício de direitos e liberdades individuais: “obter a tipificação penal específica de qualquer comportamento qualificado como homofóbico ou transfóbico”. Portanto, a premissa de Bourdieu é consolidada pelo conflito entre agentes e instituições sob a égide de um viés antagônico, consolidando o campo jurídico anômico de atuação dos tribunais.

            Do mesmo modo, Pierre Bourdieu preconiza a concepção de “historicização das normas” na esfera jurídica, tendo em vista que a máxima em pauta corrobora a adequação do ordenamento às demandas sociais contemporâneas. Diante dessa perspectiva, é imprescindível salientar como a progressiva adaptação do aparato jurídico legitima a averbação de tutela dos direitos fundamentais da comunidade LGBTQIA+, os quais foram atentados pela deletéria violência de viés homofóbico. No âmbito histórico, cabe reiterar que, desde a 10a Classificação Internacional de Doenças (CID), a transexualidade, lamentavelmente, era patologizada e rotulada como transtorno psiquiátrico. No entanto, felizmente, a concretude da “historicização das normais” está explícita não só na celebração do Ministério de Direitos Humanos em retirar a transexualidade do rol taxativo da lista de distúrbios mentais, mas também no progresso evolutivo do Direito, por meio do ordenamento do STF, em dignificar as garantias fundamentais democráticas dos integrantes LGBTQIA+, os quais não devem ser restritos do direito à igualdade de tratamento perante orientação sexual ou identidade de gênero. Logo, cabe enfatizar o enunciado proferido pela Ministra Rosa Weber: “Nessa linha, muitas vezes uma efetiva igualdade substantiva de proteção jurídica de grupos vulneráveis demanda atuação positiva do legislador, superando qualquer concepção meramente formal de igualdade, de modo a eliminar os obstáculos - físicos, econômicos, sociais ou culturais -, que impedem a sua concretização.”

            Ainda sobre a “historicização das normas”, salienta-se, sumariamente, a necessidade de aplicabilidade da mutação constitucional no tocante à percepção social sobre o conceito de racismo. Nesse ínterim, de acordo com Luis Roberto Barroso na íntegra do acórdão do STF, a ausência de contemplação textual, na Lei de Racismo, da punição dos crimes de homofobia tornou-se inadmissível na conjuntura atual, urgindo prever a mutação constitucional com o intuito de dar escopo à mitigação da discriminação e da importunação de pessoas LGBTQIA+, pois, segundo o ministro: “A mutação constitucional é um mecanismo de modificação informal da Constituição, que permite a transformação do sentido e do alcance das suas normas, sem que se opere, no entanto, qualquer alteração do seu texto. Ela pode decorrer de uma nova percepção do Direito, quando se modificarem os valores de determinada sociedade. Afinal, a ideia do bem e do justo varia com o tempo.”

            Além disso, Garapon aborda acerca do “ativismo judicial” e da imprescindibilidade da discussão, nos tribunais, sobre a temática supracitada, tornando o Judiciário um agente nevrálgico e protagonista em, atipicamente, reverter as lacunas e a mora do Legislativo, o qual, por latente omissão e negligência, é um inerte intermediário em traduzir as demandas sociais nas instâncias dos Poderes constitucionais. Sob essa óptica, a prostração letárgica do Legislativo e, consequentemente, o amplitude das funções atuantes do Judiciário simbolizam o condicionamento da “magistratura do sujeito” transcrita por Garapon. Assim, cabe ao Magistrado tutelar a proteção dos indivíduos marginalizados pela coercitiva estigmatização homofóbica, atendendo as demandas sociais inerentes ao panorama contemporâneo.

            Entretanto, apesar da imperativa atuação dos magistrados em ofertar amparo aos grupos vulneráveis, ainda há um ceticismo vinculado à credibilidade das deliberações do Judiciário, depreciando o papel da instância mencionada em assegurar os direitos fundamentais previamente negligenciados pelo segregacionismo. A título de elucidação, cabe pontuar a perniciosa fala de Jair Messias Bolsonaro sobre a ADO 26: “A decisão do Supremo, com todo o respeito que tenho aos ministros, foi completamente equivocada. (...) Prejudica o próprio homossexual, porque se o dono de um empresa for contratá-lo, vai pensar duas vezes em fazer isso já que se fizer uma piada isso pode ser levado para a Justiça".

            Nesse viés, ressalta-se que a judicialização, de acordo com McCann, deve ser convertida em prol da “mobilização do Direito”, dando escopo à salvaguarda e à defesa das contingências sociais. Desse modo, instrumentalizar o papel do STF é consolidar a oferta de estratégias de ação e, consequentemente, proteção dos indivíduos sujeitos à lesiva homofobia imanente na realidade atual. No entanto, é mister efetuar a conversão da ilusória óptica autoritária e prepotente do Judiciário em uma perspectiva tutelar e favorável aos ensejos sociais. Logo, de acordo com o ministro Luiz Fux, é necessária “uma atuação mais expansiva do Poder Judiciário em prol da garantia de valores constitucionais pode ser, assim, parte da solução para problemas político-morais e sociais de alta relevância.”.

            Portanto, dado o exposto anteriormente, cabe propor uma reflexão no que concerne a criminalização da homofobia enquadrada no conceito ontológico-constitucional do racismo e pressuposta na ADO 26. Assim, de acordo com o Ministro Relator Celso de Mello: “A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, (...) discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero.” Tendo em vista o enunciado proferido pelo Relator, a religião, na premissa da criminalização da homofobia, é equivocadamente utilizada como artifício que desumaniza a existência dos integrantes da comunidade LGBTQIA+, tornando-se, lamentavelmente, fundamento basilar de argumentos homofóbicos preconizados por representantes religiosos. Em suma, a liberdade religiosa – ao invés de incitar o amor fraternal entre suas figuras simbólicas – é manipulada por sujeitos perversos que possuem o explícito intuito de exortar a violência contra grupos sociais marginalizados.


Nome: Maria Yumi Buzinelli Inaba 

1° ano Direito - Matutino

A ADO 26 e seus desdobramentos

  

             A discussão acerca da ADO 26 se baseia no fato de que se haveria omissão inconstitucional ou mora legislativa na ausência de norma específica editada pelo CN para criminalização de todas as formas de homofobia e transfobia. No entanto, entende-se que as vias para consumar tal ato devem ser feitas corretamente e de que não há omissão inconstitucional atribuível ao congresso nacional no que diz respeito a eventual ausência de criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia.

 Em verdade, inexiste qualquer comando constitucional expresso que exija tal tipificação criminal específica, nem tampouco se constata a existência de um direito subjetivo na CF que concreta e especificamente esteja consagrado e não esteja usufruído pelos destinatários em função de uma norma penal que criminalize os ilícitos relacionados à homofobia e transfobia. Desse modo, ainda que, em tese, a criminalização possa ser considerada legítima, segundo os parâmetros constitucionais, não é obrigatória. 

Os requerentes do caso não pretendem assegurar o exercício de um direito subjetivo previsto na constituição que estivesse sendo inviabilizado por ausência de norma incriminadora, mas sim a criação de um regramento específico ou tipicidade especial para condutas de homofobia ou transfobia. Assim, deve-se respeitar o princípio da reserva legal, pois, ainda que houvesse a alegada omissão, não seria possível ao poder judiciário suprir judicialmente a eventual lacuna apontada, pois tal medida é atentatória frontalmente contra o princípio da reserva legal, em especial em matéria penal.  

A reserva legal coloca que “nullum crimen nulla poena sine previa lege”, isto é, não há crime nem pena sem lei prévia Isso significa que só será considerada como infração penal a conduta prevista como tal na lei. Nesse sentido, a própria CF estabelece no seu artigo 5º, incisivo 39, que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.”

Sendo assim, a criminalização de condutas de discrimnação quanto à orientação sexual ou identidade de gênero não pode ser efetivada pela via judicial, sob pena de violação a outros direitos e garantias fundamentais que também representam conquistas históricas do Estado Democrático de Direito, como o princípio da reserva legal. Portanto, defende-se que a CF atribui com exclusividade ao CN para definir a respeito da criminalização ou não da homofobia, ou seja, a ADO 26 fere a independência do Congresso Nacional. O STF não somente é o guardião da CF, como também o guardião do Estado Democrático e da estabilidade e pacificação social, por isso, não pode ele ir contra esses princípios.


Rienzzi Morais - 1 ano matutino


A legitimidade dos movimentos sociais na busca pela validação de seus direitos fundamentais por meio do Poder Judiciário

A Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão número 26, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 13 de julho de 2019, teve como objetivo discutir sobre a alegação do movimento LGBTQIAP+ de omissão estatal frente ao combate à violência de identidade de gênero e orientação sexual. De acordo com esse grupo minoritário, as instituições do Estado, incluindo neste ponto as esferas tangentes aos tribunais do judiciário, mostravam-se omissas diante as diversas ameaças aos direitos fundamentais defendidos pela Constituição Federal - dentre estes os importantíssimos direito à segurança pessoal e a vida. O Brasil, enquadrando-se como um dos países que mais matam transexuais no mundo, não pode permitir que o Estado apresente-se omisso diante de situações de violência contra a comunidade  LGBTQIAP+. Assim, o movimento, utilizando-se dos artifícios democráticos desenvolvidos na Constituição Federal de 1988, trouxe tal questão ao Poder Judiciário e este acabou, por fim, equiparando o crime de homofobia ao crime de injúria racial. Com isso, o intuito desse texto visa elucidar a legitimidade de tal ação por meio da legislação e do embasamento teórico de estudos do direito.

                Utilizando-se primeiramente dos mecanismos legais, em questões que dizem respeito aos direitos humanos, vale-se sempre mencionar o artigo 5º da Constituição Federal, ao qual refere-se a isonomia entre brasileiros e estrangeiros residentes no país e a garantia ao direito à vida, igualdade, segurança e propriedade privada. Apenas a menção de um desses direitos não cabem ao caso em discussão: o direito à propriedade privada. Ademais, todos os demais direitos - vida, igualdade e segurança - vêm sendo negados à comunidade LGBTQIAP+. Em um maior aprofundamento deste artigo, pode-se aprofundar o inciso X - sobre a inviolabilidade da vida privada e da imagem pessoal, dando-se o direito de indenização por danos morais e materiais. Além do mais, pode-se retirar do artigo 6º da Constituição os direitos sociais à segurança e à assistência aos desamparados. Ambos os artigos dialogam diretamente com a Convenção Americana de Direitos Humanos, um tratado internacional ratificado pelo Brasil, em especial com os artigos 7º (todos têm direitos à liberdade e à segurança pessoais) e 32 (os direitos individuais são limitados pelos direitos dos demais, para valorizar o coletivo, a segurança de todos e a democracia).

                Após citar todos esses dispositivos, faz-se necessário trazer uma elucidação da ligação entre eles e a problemática enfrentada pelo grupo minoritário LGBTQIAP+. A alegação de omissão decorre da violação dos direitos fundamentais com os indivíduos da comunidade, uma vez compreendidos que os amparos legais já existentes não apresentavam-se suficientes para combater as violências sofridas. O direito à segurança, vida,  igualdade e da vida privada, todos esses deveres do Estado fornecer, vêm sendo ignorados diante aos crimes de ódio, à intolerância, ao preconceito e à ameaça à vida dessa população. Aqui faz-se necessário mencionar a invalidade do argumento dos grupos opressores que utilizam da liberdade de expressão como legitimação ao discurso de ódio, visto que o artigo 32 da Convenção Americana de Direitos Humanos, anteriormente citado, explicita os limites da liberdade individual ao coletivo, em uma visão Rousseauniana de democracia com efetiva participação da soberania do povo. Por fim, tal situação demonstra o choque social dentro da ideia de espaços dos possíveis de Bourdieu, na qual entra em colisão os ideais de grupos conservadores com os ideais dos progressistas; mas, válida-se mencionar a impossibilidade de relativização do direito à vida por questões de ódio ao diferente, visto a sociedade plural a qual vivemos. 

                Ainda perpetuando os ideais de Bourdieu, faz-se necessário mencionar dois fatores: a universalização/ neutralização do direito e a historicidade da norma. Sobre o primeiro fator, a neutralização apresenta-se pela evocação do direito no entendimento da pluralidade de indivíduos sendo afetadas por questões morais não pertinentes ao direito, muitas vezes veiculadas com religiosidades numa tentativa proposital de ignorar a laicidade do Estado brasileiro. Nesse ponto, a universalização apresenta-se no compreendimento da necessidade de “desigualar para equivaler”, isto é, criar normas específicas para determinado grupo social para que este possa de fato estar inserido no conceito de igualdade, uma distinção básica da realidade (igualdade material) e da formalidade (igualdade formal). Sobre o segundo fator, levando-se em conta o contexto social atual, precisa-se evidenciar dois critérios que se complementam: os anos de luta da comunidade LGBTQIAP+ (existente no Brasil desde 1978) que permitiram uma maior força ao movimento e a Constituição de 88 com a tentativa de ampliação das participações populares através do viés de paradigma democrático participativa. Ambos permitem que a posição da comunidade seja não apenas coerente com a realidade atual como, também, legítima.

                Além do mais, para a continuidade desse texto, faz-se necessária uma breve explicação sobre a função atual do STF, o guardião da Constituição Federal. Muito se diz respeito ao ativismo judicial como forma do poder judiciário se sobrepor aos demais poderes. No entanto, tal ideia não compreende as complexidades democráticas atuais e se prende ao conceito tripartite em seu formato original performado por Montesquieu, ignorando as mudanças históricas-políticas-sociais decorrentes desde então. Assim, a situação retrata-se como uma busca por direitos com o auxílio do STF, uma vez que o direito tutelado é a garantia dos direitos fundamentais da população LGBTQIAP+, incluindo a segurança pessoal, vide a inadimplência dos demais órgãos públicos, entendendo-se o direito como uma mera ferramenta da dinâmica social, sendo usado como uma forma de conquista de direitos por muitos grupos minoritários. Com isso, reitera-se dois posicionamentos de Ronald Dworkin:

 a corte é um fórum de princípios na qual o juiz irá trabalhar até identificar o comando normativo para apresentar o que a lei pode fazer pelo direito do indivíduo ou da coletividade;

a revisão constitucional não afeta a democracia, pelo contrário, a garante;

                Por fim, compreende-se que  o direito é uma ferramenta de democracia que deve ser usado por todos para que a sociedade se torne de fato igualitária e justo, assim, o movimento LGBTQIAP+ teve de fazer tal mobilização para de fato poder ter acesso aos seus direitos fundamentais previstos em lei. Assim, as mudanças ocorridas apresentam importâncias em um nível estratégico - ao que diz respeito à ampliação democrática como um marco para um entendimento da necessidade de inserir a pluralidade na política -  e um nível constitutivo - ao instruir debates em torno das temáticas de direitos humanos e a liberdade de expressão, permitindo a circulação de ideias e informações acerca das limitações legais e da necessidade da perpetuação de lutas minoritárias para que haja de fato a inclusão de todos.

  


ADO nᵒ 26 e a capacidade legitimação de lutas sociais pelo ativismo judicial

 

            Nos últimos anos, nos âmbitos da Nova República e do Estado Democrático de Direito, instalado com a Constituição de 1988, tem ocorrido um fenômeno de grande destaque nos meios jurídicos e sociais, relacionado à busca por justiça, proteção legal, expansão e conquista de direitos: o ativismo judicial. Tal fenômeno se caracteriza pelo aumento, tanto de quantidade quanto da relevância de questões políticas, com repercussões de importância social e jurídicas, que são resolvidas no âmbito do Poder Judiciário. No texto anterior postado, o foco principal foi a análise da legitimidade deste fenômeno e os fatores que o desencadearam no contexto político nacional. Nesse texto, no entanto, o foco maior será dedicado às repercussões sociais das decisões jurídicas tomadas e o papel desempenhado pelo corpo social e os grupos que acionam o Judiciário em seu anseio de assegurar seus direitos constitucionais, examinando-se, como exemplo base de decisão, a ADO nᵒ 26, na qual o Supremo Tribunal Federal reconheceu a criminalização da homofobia.

            A Ação Direta de Omissão nᵒ 26 foi intentada pelo Partido Socialista (PPS) em 2019, com a finalidade de obter a criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia. Tais atos não se encontravam categorizados explícita e especificamente no Código Penal, não sendo reconhecida, até então, a homofobia como um fator agravante, uma motivação preconceituosa, em crimes de danos morais e físicos contra membros da comunidade LGBTQIA+. Portanto, não havia nos parâmetros do espaço dos possíveis, termo criado pelo sociólogo Bourdieu para caracterizar os entendimentos da legislação, da doutrina e da jurisprudência, uma norma que protegesse legalmente tal grupo social de ataques incitados por ódio e que buscasse combater expressamente este tipo de preconceito.

             Também é importante ressaltar que a luta da comunidade LGBTQUIA+ pelo reconhecimento e positivação de tais crimes de ódio ocorria nos meios legislativos e públicos há muito tempo. Projetos de lei a respeito da criminalização da homofobia transitavam nos meios do Congresso Nacional há mais de dez anos quando os grupos afetados resolveram levar a questão ao Judiciário. A ação, que contou com ampla participação social durante o processo, através das diversas entidades e organizações defensoras dos direitos da comunidade interessada que puderam influenciar diretamente a decisão do Supremo, por meio da sua participação no corpo de amicus curiea, refletiu essa óbvia omissão por parte do poder Legislativo em cuidar de tipificar os atos de homofobia e transfobia.

Tendo isso em vista, é notável no caso dessa decisão a atuação do Poder Judiciário como um remediador para as omissões do Poder Legislativo, em um claro exemplo de magistratura do sujeito. Como explica o sociólogo Antoine Garapon, em meio aos conflitos sociais nascidos nos âmbitos democráticos, muitos sujeitos e grupos minoritários acabam perdendo força e espaço devido a sua condição histórica e social marginalizada, o que geralmente implica em um constante ataque aos seus direitos fundamentais. Dessa forma, o Judiciário possui a capacidade de devolver a dignidade democrática aos sujeitos mais desamparados da sociedade, nas palavras do. Em um contexto de crise representativa e negligência por parte do Congresso de tratar de assuntos que podem ocasionar polêmica, esta capacidade se mostra de extrema essencialidade para a manutenção dos princípios democráticos e constitucionais.

É necessário, no entanto, reiterar mais uma vez a mobilização social do Poder Judiciário, de modo afastar a ideia de que essa tutelarização dos direitos dos sujeitos ocorra de maneira paternalista. Na perspectiva do ativismo judicial, o Judiciário atua como uma ferramenta, um meio de resolução de conflitos travados no interior da sociedade democrática. Assim, como afirma, o sociólogo Michael McCann, os tribunais não determinam as ações judiciais dos cidadãos e organizações, mas ajudam, de modo ativo, a traçar o panorama ou a rede de relações na qual se encontram as demandas judiciais em curso dos cidadãos e organizações, de modo a legitimar e contribuir para as lutas sociais destes.

Pois bem. A partir da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, homofobia e transfobia foram criminalizados de maneira específica e sistêmica, ainda que por meios judiciais excepcionais e não por meios legislativos. O plenário do STF, seguindo os argumentos apontados pelo ministro relator do caso, Celso de Mello, compreendeu que a homofobia e a transfobia se enquadravam no conceito de racismo, já tipificado especialmente como crime de ódio. Os ministros, portanto, estenderam o entendimento de racismo existente, compreendendo, com base na jurisprudência do próprio tribunal, sobretudo na HC nᵒ 82. 424/RS, em que atos anti-semitas foram enquadrados na lei anti-racismo, e em princípios constitucionais, tais como a vedação da discriminação, a isonomia e a proteção da dignidade humana, que racismo envolve a ideologia de que existe a superioridade de um grupo em desfavor de outro. Dessa forma, a comunidade LGBTQIA+ se encontraria em uma posição social inferior em relação à parcela da população heterossexual e cisgênera, devido à perseguição histórica e constante daquele grupo.

Nota-se, dessa maneira, que o Poder Judiciário desencadeou uma abertura do espaço dos possíveis para englobar atos degrantes e preconceituosos que ainda não haviam sido descritos objetivamente. Também é perceptível a realização da historização das normas constitucionais a fim de abarcar questões sociais que, à época da constituinte, não possuíam espaço ou força para serem de fato tipificados, mas cuja essencialidade sempre esteve presente nos artigos da Constituição; nessa situação, portanto, há a evolução posteriori do direito para abarcar um tipo específico de crime de ódio cuja a vedação foi a priori concebida pela essência da Constituição de 1988.

Resta, desse modo, discutir as repercussões da decisão em questão, nos meios sociais e jurídicos. Uma das principais características do ambiente judicial e da norma efetiva, de acordo com Bourdieu, é a sua racionalidade; nela, está englobada o potencial de universalização e neutralização da norma, que, basicamente, consistem em seu potencial de se fazer valer em caráter universal e de maneira objetiva. Assim, a primeira grande repercussão da decisão judicial em destaque foi, precisamente, o enquadramento de atos homofóbicos e transfóbicos como crimes raciais, o que lhes conferiu uma maior proteção judicial e repreensão penal. Nessa perspectiva, tais crimes passaram a ser combatidos mais severamente, o que ocasionou a redução destes nos anos que seguiram à decisão.

Em uma segunda análise, nota-se que a criminalização da homofobia por vias judiciais teve consequências estruturais mais profundas e abrangentes, atuando não apenas no combate das violências físicas, mas também das simbólicas. A discussão de tal questão nos âmbitos da Suprema Corte despertou um interesse nacional, como se é de esperar, pelo tema, o que fez com que homofobia e a transfobia passassem a ser discutidas mais abertamente nos meios públicos e políticos. Em um nível estratégico e instrumental, decisão do STF trouxe legitimidade e reconhecimento às lutas contra a discriminação da comunidade LGBTQIA+, pavimentando o caminho para que tal luta continuasse seu processo de expansão no futuro, sempre em busca de assegurar os direitos do grupo e combater as injustiças contra ele proferidas. Já em um nível cultural e constituitivo, a decisão do tribunal trouxe uma visibilidade fundamental à causa LGBTQIA+, expondo de maneira aberta e explícita as perseguições sofridas pela comunidade no Brasil e suas consequências gravíssimas e promovendo a interiorização do direito ao defender a negação da discriminação e incentivar a igualdade. A criminalização da homofobia contribui para construir uma barreira contra as humilhações e as exclusões sociais provocadas contra a comunidade em questão e, ao mesmo tempo, edificou um palanque, onde essas vozes que, por tanto tempo, foram ignoradas, puderam finalmente conquistar um espaço legítimo para se defenderem.

Em resumo, têm-se que ADO nᵒ 26 foi um marco brilhante para a democracia brasileira, à medida que ajudou a amenizar conflitos sociais graves e abriu espaço para que grupos marginalizados buscassem pelo reconhecimento de seus direitos, agindo contra posturas majoritárias e anticonstitucionais, e um exemplo de como o ativismo judicial pode atuar como ferramenta potente a favor da mobilização e das lutas sociais.


Nome: Isabela Maria Valente Capato

R.A: 221221468

Primeiro ano de Direito - período matutino