quarta-feira, 2 de novembro de 2022

A legitimidade dos movimentos sociais na busca pela validação de seus direitos fundamentais por meio do Poder Judiciário

A Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão número 26, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 13 de julho de 2019, teve como objetivo discutir sobre a alegação do movimento LGBTQIAP+ de omissão estatal frente ao combate à violência de identidade de gênero e orientação sexual. De acordo com esse grupo minoritário, as instituições do Estado, incluindo neste ponto as esferas tangentes aos tribunais do judiciário, mostravam-se omissas diante as diversas ameaças aos direitos fundamentais defendidos pela Constituição Federal - dentre estes os importantíssimos direito à segurança pessoal e a vida. O Brasil, enquadrando-se como um dos países que mais matam transexuais no mundo, não pode permitir que o Estado apresente-se omisso diante de situações de violência contra a comunidade  LGBTQIAP+. Assim, o movimento, utilizando-se dos artifícios democráticos desenvolvidos na Constituição Federal de 1988, trouxe tal questão ao Poder Judiciário e este acabou, por fim, equiparando o crime de homofobia ao crime de injúria racial. Com isso, o intuito desse texto visa elucidar a legitimidade de tal ação por meio da legislação e do embasamento teórico de estudos do direito.

                Utilizando-se primeiramente dos mecanismos legais, em questões que dizem respeito aos direitos humanos, vale-se sempre mencionar o artigo 5º da Constituição Federal, ao qual refere-se a isonomia entre brasileiros e estrangeiros residentes no país e a garantia ao direito à vida, igualdade, segurança e propriedade privada. Apenas a menção de um desses direitos não cabem ao caso em discussão: o direito à propriedade privada. Ademais, todos os demais direitos - vida, igualdade e segurança - vêm sendo negados à comunidade LGBTQIAP+. Em um maior aprofundamento deste artigo, pode-se aprofundar o inciso X - sobre a inviolabilidade da vida privada e da imagem pessoal, dando-se o direito de indenização por danos morais e materiais. Além do mais, pode-se retirar do artigo 6º da Constituição os direitos sociais à segurança e à assistência aos desamparados. Ambos os artigos dialogam diretamente com a Convenção Americana de Direitos Humanos, um tratado internacional ratificado pelo Brasil, em especial com os artigos 7º (todos têm direitos à liberdade e à segurança pessoais) e 32 (os direitos individuais são limitados pelos direitos dos demais, para valorizar o coletivo, a segurança de todos e a democracia).

                Após citar todos esses dispositivos, faz-se necessário trazer uma elucidação da ligação entre eles e a problemática enfrentada pelo grupo minoritário LGBTQIAP+. A alegação de omissão decorre da violação dos direitos fundamentais com os indivíduos da comunidade, uma vez compreendidos que os amparos legais já existentes não apresentavam-se suficientes para combater as violências sofridas. O direito à segurança, vida,  igualdade e da vida privada, todos esses deveres do Estado fornecer, vêm sendo ignorados diante aos crimes de ódio, à intolerância, ao preconceito e à ameaça à vida dessa população. Aqui faz-se necessário mencionar a invalidade do argumento dos grupos opressores que utilizam da liberdade de expressão como legitimação ao discurso de ódio, visto que o artigo 32 da Convenção Americana de Direitos Humanos, anteriormente citado, explicita os limites da liberdade individual ao coletivo, em uma visão Rousseauniana de democracia com efetiva participação da soberania do povo. Por fim, tal situação demonstra o choque social dentro da ideia de espaços dos possíveis de Bourdieu, na qual entra em colisão os ideais de grupos conservadores com os ideais dos progressistas; mas, válida-se mencionar a impossibilidade de relativização do direito à vida por questões de ódio ao diferente, visto a sociedade plural a qual vivemos. 

                Ainda perpetuando os ideais de Bourdieu, faz-se necessário mencionar dois fatores: a universalização/ neutralização do direito e a historicidade da norma. Sobre o primeiro fator, a neutralização apresenta-se pela evocação do direito no entendimento da pluralidade de indivíduos sendo afetadas por questões morais não pertinentes ao direito, muitas vezes veiculadas com religiosidades numa tentativa proposital de ignorar a laicidade do Estado brasileiro. Nesse ponto, a universalização apresenta-se no compreendimento da necessidade de “desigualar para equivaler”, isto é, criar normas específicas para determinado grupo social para que este possa de fato estar inserido no conceito de igualdade, uma distinção básica da realidade (igualdade material) e da formalidade (igualdade formal). Sobre o segundo fator, levando-se em conta o contexto social atual, precisa-se evidenciar dois critérios que se complementam: os anos de luta da comunidade LGBTQIAP+ (existente no Brasil desde 1978) que permitiram uma maior força ao movimento e a Constituição de 88 com a tentativa de ampliação das participações populares através do viés de paradigma democrático participativa. Ambos permitem que a posição da comunidade seja não apenas coerente com a realidade atual como, também, legítima.

                Além do mais, para a continuidade desse texto, faz-se necessária uma breve explicação sobre a função atual do STF, o guardião da Constituição Federal. Muito se diz respeito ao ativismo judicial como forma do poder judiciário se sobrepor aos demais poderes. No entanto, tal ideia não compreende as complexidades democráticas atuais e se prende ao conceito tripartite em seu formato original performado por Montesquieu, ignorando as mudanças históricas-políticas-sociais decorrentes desde então. Assim, a situação retrata-se como uma busca por direitos com o auxílio do STF, uma vez que o direito tutelado é a garantia dos direitos fundamentais da população LGBTQIAP+, incluindo a segurança pessoal, vide a inadimplência dos demais órgãos públicos, entendendo-se o direito como uma mera ferramenta da dinâmica social, sendo usado como uma forma de conquista de direitos por muitos grupos minoritários. Com isso, reitera-se dois posicionamentos de Ronald Dworkin:

 a corte é um fórum de princípios na qual o juiz irá trabalhar até identificar o comando normativo para apresentar o que a lei pode fazer pelo direito do indivíduo ou da coletividade;

a revisão constitucional não afeta a democracia, pelo contrário, a garante;

                Por fim, compreende-se que  o direito é uma ferramenta de democracia que deve ser usado por todos para que a sociedade se torne de fato igualitária e justo, assim, o movimento LGBTQIAP+ teve de fazer tal mobilização para de fato poder ter acesso aos seus direitos fundamentais previstos em lei. Assim, as mudanças ocorridas apresentam importâncias em um nível estratégico - ao que diz respeito à ampliação democrática como um marco para um entendimento da necessidade de inserir a pluralidade na política -  e um nível constitutivo - ao instruir debates em torno das temáticas de direitos humanos e a liberdade de expressão, permitindo a circulação de ideias e informações acerca das limitações legais e da necessidade da perpetuação de lutas minoritárias para que haja de fato a inclusão de todos.

  


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