segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

      O partido político Cidadania, através de uma petição, impetrou a Ação Direta de Inconstitucionalidade, com pedido subsidiário de interpretação conforme à Constituição, para que a chamada "injúria racial" seja considerada como crime de racismo e, consequentemente, imprescritível e inafiançável. Nesse sentido, no julgamento do Habeas Corpus, realizado pelo STF, a ordem de aplicar imprescritibilidade ao caso de injúria racial cometido por uma mulher de 72 anos foi denegada, isto é, não houve acordo para concordar com o pedido, tendo vencido o Ministro Nunes Marques, que concedia a ordem para reconhecer a extinção de punibilidade da paciência pela ocorrência da prescrição. Isto é, o Supremo Tribunal Federal não entendeu o enquadramento do dispositivo de injúria racial como racismo. 

      Em um primeiro momento, cabe explicar brevemente o entendimento atual da doutrina e da jurisprudência jurídica acerca da suposta diferença entre racismo e injúria racial. A injúria está presente no Código Penal brasileiro e diz respeito à ofensa a honra de alguém se valendo de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem; já o conceito de racismo está intimamente ligado a uma coletividade indeterminada de indivíduos, isto é, a integralidade de indivíduos racializados, e é imprescritível e inafiançável. De modo geral, situações como ofender uma pessoa preta chamando-a de "macaca" é entendido como injúria, pois supostamente fere apenas a honra de uma pessoa, ao passo que racismo seria, por exemplo, inserir uma placa em um estabelecimento comercial com os dizeres "proibida a entrada de pessoas pretas e pardas". Entretanto, cabe destacar que ambos estão baseados no preconceito racial, que historicamente ocorre no Brasil. 

      Dessa forma, há a luta para que a injúria racial seja encarada como uma forma de racismo, visto que a hipótese de que a negação à honra de apenas uma pessoa preta é falsa, pois, na realidade, nega a honra da coletividade de pessoas pretas, assim como o que se convencionou enquadrar no crime de racismo. Ou seja, subjugar um indivíduo racializado chamando-o de "macaco", por exemplo, abarca a integralidade de pessoas pretas que viveram e vivem no Brasil, pois essa ofensa está enraizada de forma histórica e, infelizmente, é compartilhada por muitos. Ademais, além da luta para tal enquadramento reconhecer que o racismo não pode ser individualizado, a estatuição de injúria como racismo faz com que esse dispositivo se torne imprescritível e inafiançável, de forma a não possibilitar mais que pessoas racistas sejam constantemente impunes pelo sistema jurídico brasileiro. Assim, o conflito expresso no litígio é a consideração ou não da injúria racial como racismo. 

      Cabe enfatizar que essa consideração está dentro dos espaços dos possíveis, visto que é legitimada pela Constituição Federal e por diversos movimentos sociais do Brasil, que são históricos e estão presentes desde antes do fim da escravidão. Outrossim, tal enquadramento é importante para auxiliar na promoção da dignidade para as comunidades racializadas, que, historicamente, tiveram seus direitos negados, feridos, e colocados à margem dos interesses da branquitude e da elite. Pode-se exemplicar através da Lei de Terras, de 1850, que inviabilizou o acesso de terras a essas pessoas, assim como a ausência de políticas públicas pós escravidão no que concerne à moradia, saúde, segurança, entre outros. 

      Ainda no que concerne à possibilidade do Judiciário entender a injúria como racismo, essa atitude não seria ativismo nem paternalismo judicial, mas sim um caso de magistratura do sujeito, pois os magistrados não visam protagonizar uma discussão, mas sim estatuir debates que ocorrem há anos nos campos sociais e políticos. Também, isso seria importante pois tal entendimento seria difícil por outra via, como a legislativa, visto que os deputados e senadores, representantes do povo, têm, majoritariamente, interesses ligados à elite econômica e à branquitude. Nesse sentido, ocorreria uma antecipação por parte do Poder Judiciário a fim de tutelar sobre o direito de ter a existência reconhecida de forma digna, sem a perpetuação de preconceitos e estigmas raciais. 

      Ademais, tal entendimento e equiparação é fundamental para o aprofundamento da Democracia, do Estado Democrático de Direito e da Constituição Federal, visto que esses são pautados na igualdade (sob o viés formal), solidariedade, construção de uma sociedade justa e livre, erradicação da pobreza e de desigualdades, entre outros. Desse modo, o reconhecimento da injúria como uma forma de racismo possibilita que esses pilares supramencionados tenham maior chance de efetivação no território brasileiro, já que reconhecem problemas relativos à promoção da dignidade e honra de indivíduos racializados. 

      Além de ocasionar o aprofundamento da Democracia, tal resultado modificaria o contexto imediato de lutas antirracistas e da cultura geral, pois não haveria mais a possibilidade de pessoas racistas não serem reconhecidas como tais, concomitante à punição mais rigorosa e adequada a essas pessoas, que não poderão nem mesmo pagar fiança e prescrever suas atitudes criminosas e preconceituosas. Nesse sentido, há mais possibilidade das pessoas se educarem sobre a vivência de pessoas pretas e pardas e de seus pensamentos e teorias, a fim de não perpetuar racismo e, consequentemente, serem criminosas. Bem como auxilia na compreensão dos preconceitos raciais como fenômenos históricos e coletivos, não individuais e isolados (concepção ligada ao entendimento majoritário acerca de injúria). 

      No que tange à supramencionada maior possibilidade de educar-se sobre pessoas racializadas, essas atitudes estão diretamente ligadas ao rompimento da monocultura do saber. Esse conceito diz respeito à consideração única de valores entendidos como verdade absoluta, que são formulados principalmente por pessoas brancas, que, de forma histórica, têm mais acesso à academia, à educação e à propagação de teorias. Nesse sentido, a branquitude tem o protagonismo na definição de verdades e, até mesmo para definir a vivência de pretos e pratos. Entretanto, felizmente há a ecologia dos saberes, isto é, entender que não há uma verdade absoluta promulgada por determinado grupo, mas sim uma infinidade de saberes, bem como a necessidade de valorizar saberes e teorias emancipatórias. Dessa forma, a equipação da injúria racial como crime de racismo traz a tona a ecologia dos saberes e nega a monocultuar do saber, pois dá voz a uma das pautas do movimento antirracista. 

      Por fim, cabe ressaltar que o entendimento atual jurisprudencial e da doutrina acerca da injúria racial tem relação com a desumanização de pessoas pretas. Isto porque subentende que uma atitude pautada em preconceitos raciais pode ser relativizada e, portanto, a humanidade da vítima pode ficar em segundo plano, ou seja, há anulação de sua dignidade, honra e humanidade, a fim de que uma pessoa racista não possa ser considerada criminosa. 

Bárbara Canavês Domingos - 1° ano Direito Noturno 


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