domingo, 20 de novembro de 2022

Cota não é esmola: análise da ADPF 186 sob viés sociológico

        A ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 186/DF, de junho de 2004, diz respeito ao reconhecimento da validade do sistema de cotas étnico-raciais para ingresso em universidades públicas brasileira, e foi interposta pelo partido Democratas (DEM) contra a Universidade Federal de Brasília (UnB), declarando em sua limitar o pedido de inconstitucionalidade do Plano de Metas para a Integração Social, Étnica e Racial que dispõe em seus itens: disponibilizar durante 10 anos 20% das vagas do vestibular para estudantes negros em todos os cursos oferecidos pela universidade; disponibilizar por um período de 10 anos, um pequeno número de vagas para índios de todos os Estados brasileiros (...); alocar bolsas para negros e indígenas em situação de carência, segundo os critérios usados pela Secretaria de Assistência da UnB; e propiciar moradia para estudantes indígenas e conceder preferência nos critérios de moradia para estudantes negros carentes.

        É válido ressaltar que a UnB foi pioneira na iniciativa referente a adoção do sistema de cotas raciais no Brasil, no ano de 2004, sendo um ato muito simbólico por ter partido de uma universidade localizada na capital do país. Portanto, o ato que deveria representar uma alternativa que buscasse mitigar as desigualdades sociais, econômicas e educacionais, bem como reconhecer a dívida histórica, considerando fatores históricos que originaram a discriminação e, consequentemente, o afastamento dos negros de ambientes de ensino, foi totalmente manipulado. Segundo o requerente, sob uma índole racista, essas disposições ofendem diversos artigos da Constituição Federal, entre eles: artigo 1°, inciso III (dignidade da pessoa humana); artigo 3°, inciso IV (promover o bem de todos, sem preconceitos); e artigo 4°, inciso VIII (repúdio ao terrorismo e ao racismo). Dessa forma, percebe-se uma inversão lógica, quando o partido em questão declara que essas medidas seriam, na verdade, racistas e ferem a dignidade das pessoas negras. 

        O partido afirma, ainda, que “ninguém é excluído, no Brasil, pelo simples fato de ser negro”, e acusa a universidade e os apoiadores do sistema de cotas de apontarem um problema inexistente, pois a miscigenação do nosso país garantiria que esse tipo de discriminação não ocorra. Ademais, destaca também que “cotas para negros nas universidades geram a consciência estatal de raça, promovem a ofensa arbitrária ao princípio da igualdade, gerando descriminação reversa em relação aos brancos pobres, além de favorecerem a classe média negra”. Essa citação, além de representar uma ignorância de conhecimento de dados quantitativos, visto que segundo o IBGE, entre os 10% mais pobres, 75% são negtos, demonstra também um desconhecimento do próprio sistema de cotas e distribuição de vagas. 

        Outra afirmação do partido, anexado ao processo, é que “em função da intensa miscigenação brasileira, é impossível identificar quais seriam os legítimos beneficiários dos programas de natureza compensatória”. A doutora Roberta Fragoso, do DEM, sustenta em sua fala que existem inúmeros desafios na implementação de cotas raciais no Brasil, inclusive citando uma pesquisa que diz ser impossível correlacionar cor de pele e ancestralidade genômica. Argumento irrelevante pois nenhuma condição genética impede alguém de sofrer racismo. 

        Em contrapartida, a doutora Indira Ernesto Silva, em defesa da UnB, discursa falando apesar da miscigenação, nunca houve dificuldades para indicar quem é branco e quem é negro, e que os olhares brasileiros identificam os negros em qualquer situação, bem como não podemos hierarquizar as ciênciais naturais acima das ciências sociais. A partir disso, o reitor da UnB, em resposta, reforça mais uma vez a importância do sistema de reserva de cotas raciais para a democratização do ensino superior, que só deve ser abandonado quando forem eliminadas todas as restrições ao acesso de certas categorias sociais à universidade. Em suas palavras, o “combate à discriminação por si só é medida insuficiente à implementação da igualdade”, é necessário a proibição da discriminação com políticas que promovam a igualdade.

        É válido lembrar também que poderíamos citar muitos exemplos que vão além da esfera universitária. A desigualdade racial, no Brasil, ultrapassa a esfera acadêmica e reflete-se nas áreas econômica, política, entre outras. Esse fenômeno caracteriza a interseccionalidade da discriminação. Para homens negros, essa discriminação seria dada pela sua raça e sua classe. Porém, para mulheres negras, a situação é ainda mais frágil, além da discriminação por raça e classe, surge também a discriminação por gênero.


“A raça não existe para você porque nunca foi uma barreira. Os homens negros não têm essa oportunidade.”

- Chimamanda Ngozi Adichie

        Dado o exposto, os ministros, por unanimidade, compartilharam da concepção da Procuradoria Geral da República e da Advocacia Geral da União, votando conforme o relator Ministro Ricardo Lewandowski pela improcedência total da ação. Nos votos, os direitos da personalidade são bastante citados, sendo estes formados pelos direitos necessários para garantir segurança ao homem em suas relações jurídicas, além de reforçarem o asseguramento da igualdade formal e material. O ministro Gilmar Mendes, traz em seu voto que “toda igualdade de direito tem por consequência uma desigualdade de fato e toda desigualdade de fato tem como pressuposto uma desigualdade de direito”. Portanto, para estabelecer a igualdade de fato (ou material) é preciso reconhecer as desigualdades de direitos, para que haja equidade jurisdicional para um balanço justo. Para a ministra Rosa Weber, “sem igualdade mínima de oportunidades, não há igualdade de liberdade”. 

        Partindo dos conceitos de Pierre Bourdieu, a palavra “cultura” não pode ser desassociada das consequências da dominação simbólica, sendo bastante relevante na demarcação de posições sociais, considerando o impacto colonialista. Logo, a dominação cultural baseia-se no capital cultural (conhecimento e técnica) como justificativas para aplicação do poder e violência. Nesse caso, cabe também a postulação sobre o espaço dos possíveis. Garapon defende que o Direito é resultado de ações sociais que visam dar maior visibilidade a pautas de cunho coletivo. Dessa forma, a justiça não pode se limitar apenas ao que é “justo”, pois ela também é responsável por garantir a igualdade material dos direitos.

        Segundo McCann, a mobilização do Direito seria uma atividade coletiva que consiste na defesa de interesses sociais, no cenário institucional. Sendo assim, em uma sociedade com a persistência do racismo estrutural, a pressão ao Poder Judiciário, devido à sua função de garantir os direitos individuais e coletivos, além de resolver os conflitos entre os cidadãos, é essencial. Por fim, Sara Araújo discorre a imposição global do primado do Direito como um mecanismo de expansão do projeto capitalista e colonial, dessa forma, a colonialidade jurídica disfarça a colonialidade do saber. A dominação do sul por parte do norte fortalece como o reconhecimento do pluralismo jurídico não envolve necessariamente a superação do modelo expansionista.


Nome: Sarah de Jesus Silva dos Santos

Turma XXXIX - 1° ano Direito (Matutino)

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