terça-feira, 29 de novembro de 2022

A ADI n.6.987 como uma importante manifestação do ativismo judicial.

A manutenção do racismo estrutural perdura há décadas, essencialmente em um país conservador, racista e patriarcal como o Brasil, o qual sustenta seu habitus para que esse padrão de sociedade perdure, e é em virtude disso que a injúria racial tem sido motivo de debate acerca de seu enquadramento como racismo, haja vista que reúne elementos contundentes para sua caracterização. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.6.987 trata exatamente dessa questão, o qual “em face do artigo 140, §3º, do Código Penal, para que, à luz do princípio da proporcionalidade enquanto proibição de proteção insuficiente, a conduta que a jurisprudência e posteriormente a doutrina convencionaram chamar de “injúria racial” seja considerada como espécie de racismo”, ou seja, a conduta de ofender um indivíduo em sua honra por elemento racial deve ser entendida como o crime de praticar o preconceito por raça. Tal questão perpassa por alguns pontos relevantes como: incoerência da ideia de injúria não-racista, tendo em vista que essa é uma prática que perdura o racismo estrutural no país e impunidade do racismo decorrente de tudo ser classificado como uma injúria racial não-racista. 

Diante desse quadro, cabe salientar que tal tema é passível de discussão tendo em vista a caracterização do espaço dos possíveis pela Constituição Federal de 1988, a qual trata nos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a promoção do bem de todos, “sem preconceitos origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV), além de enunciar como princípio norteador do ente soberano em suas relações internacionais o “repúdio ao terrorismo e ao racismo” (art. 4º, VIII). Assim como, o texto constitucional trouxe ainda mandamento de incriminação de condutas racistas, como inafiançáveis e imprescritíveis. Ademais, o Habeas Corpus (HC) 15248, que trata da defesa de uma mulher com mais de 70 anos, a qual foi condenada por ter ofendido uma trabalhadora com termos racistas.

Nesse sentido, convém ressaltar a princípio, que o conflito dentro do espaço dos possíveis é apenas aparente, haja vista que a Constituição Federal, norma Constitucional que rege todas as outras normas, apresenta-se claramente contra qualquer forma de discriminação racial, o que pode incluir a injúria racial, principalmente, quando entendida pela jurisprudência ser é imprescritível, por ser espécie de racismo. Ademais, o não reconhecimento da injúria racial como racismo torna ineficaz o repúdio constitucional ao racismo. Isso ocorre em virtude da busca por uma racionalização no que diz respeito à impunidade de indivíduos racistas, ou seja, a ausência de jurisprudência que enquadre a injúria racial como racismo, contribui para que o problema seja tratado apenas de forma superficial, contribuindo, assim, para que continue um conflito racial e uma segregação formal que ocorrem de maneira velada, dissimulada, encoberta pelo mito da democracia racial e pela cordialidade do brasileiro. 

Como resultado, a neutralização ou universalização da norma para tratar do tema de injúria racial mostram-se como um dos pilares que perpetuam o racismo estrutural, haja vista a ausência de uma interseccionalidade capaz de entender todas as motivações de quem é racista, isto é, a busca pela manutenção de uma sociedade patriarcal, elitista e branca. Diante do supracitado, a historicização da norma, entendida como adaptação às mudanças sociais,  segundo Pierre Bourdieu, embora apresente grande avanço essencialmente com a Constituição Federal, ainda sofre com as possibilidade perdidas de modificação do campo social e do campo jurídico, haja vista que desde a abolição da escravatura não há um combate expresso ao racismo velado, manifestado atualmente pela injúria racial, a qual não é tratada como racismo. 

Nesse ínterim, surge um ponto importante, pois, a ausência de normas que correspondam aos anseios dos indivíduos vítimas da desigualdade e principalmente vítimas do racismo, encontra na justiça, segundo Garapon, mecanismos capazes de apaziguar o molestar do indivíduo sofredor moderno, com isso, a magistratura do sujeito mostra-se presente, uma vez que há o chamamento da justiça para tutelar as formas de sofrimento. Assim, para Garapon, “a magistratura do sujeito torna-se uma tarefa política essencial, pois não basta denunciar o paternalismo ou o controle social: a evolução das sociedades democráticas devolve à proteção toda sua dignidade democrática”. 

O juiz coloca-se no lugar da autoridade faltosa para autorizar uma intervenção nos assuntos particulares de um cidadão, o qual para muitos denomina-se de judicialização da justiça, em que o magistrado toma iniciativa de protagonizar a discussão da demanda do momento atual, que, neste caso, busca enquadrar a injúria racial como racismo. A busca pela garantia do direito formal a uma parcela da população segregada em diversos setores da sociedade, faz com que a magistratura do sujeito seja uma prática que aprofunda a democracia e que é capaz de tutelar os indivíduos desamparados. Diante dessa perspectiva, o direito a ser tutelado diz respeito à questão da honra, o qual o indivíduo é ofendido em sua honra subjetiva por motivação racista, por seu pertencimento a grupo racial minoritário-estigmatizado. Logo, a capacidade do direito de invadir a moral, a intimidade, o autogoverno, mostra-se como a única via legítima capaz de solucionar o que está presente na ADI n.6.987. 

Outrossim, cabe ressaltar que o fato de o Brasil ser um país extremamente racista e que necessita de mecanismos jurídicos capazes de igualar os direitos de maneira formal e material, e que cada vez mais isso tem se mostrado como uma questão de urgência a ser solucionada, não é possível aferir um aspecto de antecipação na decisão expressa do julgado, tendo em vista que isso é uma discussão que está sendo relegada a um segundo plano a anos, o que contribui para que não seja possível uma antecipação da decisão. Diante dessa perspectiva, apesar de inúmeros entraves para que seja garantido a proposta do julgado, é possível mencionar sobre um aprofundamento da democracia, tendo em vista que as inúmeros movimentações sociais que chegam aos tribunais, por exemplo, intima a democracia a inventar novas maneiras de resolver conflitos e de proteger os indivíduos frágeis, essencialmente, quando a conjuntura atual exige que medidas no campo do direito sejam tomadas. 

Desse modo, a consoante demanda de mobilização do Movimento Negro e do movimento LGBTQIA+, mostra exatamente as mudanças do momento presente, o que para McCann, as ideias modelam cálculos de interesses e motivações para a ação. Assim, surge a mobilização do direito, que se refere às ações de indivíduos, grupos ou organizações em busca de realizações de seus interesses e valores. Tais questões ao serem acatadas modificam não apenas o contexto presente, mas também o futuro, haja vista que alguns tipos de comportamentos antes normalizados, passam a ser intoleráveis, tomando, assim, novos espaços e produzindo efeitos de longa duração. Em nível instrumental ou estratégico, produz efeitos de maneira imediata, moldando as ações dos atores do Estado e da sociedade, o qual fornece “diversos precedentes estratégicos para as partes envolvidas em diferentes relações por toda a sociedade. Tais precedentes tornam-se ‘fichas para a negociação’, resultantes de previsões sobre o que as partes conseguiram se fossem parar nos tribunais ou diante de outras autoridades jurídicas”; enquanto o nível do poder construtivo da autoridade judicial, mostra-se em caráter mais longo e de maior abrangência, isto é, “diz respeito aos modos pelos quais as práticas de construção jurídica dos tribunais são constitutivas de vida cultural.

Com isso muito bem delimitado, ao discutir tais questões na ADI n.6.987, pode-se falar acerca da questão de desafiar o cânone hegemônico até então normalizado, ou seja, uma única cultura imposta, descaracterizando todas as demais, essencialmente as do sul. É dentro dessa perspectiva que a autora Sara Araújo discute acerca do tema, o que, segundo ela, “o pensamento moderno impõe e estabelece os limites de uma linha abissal que divide o mundo entre o universo deste lado da linha e o universo do outro lado da linha”. Essa questão se manifesta no julgado, quando a questão da injúria racial não é vista como racista, isto é, existe uma questão intrínseca a essa ideia de fazer com que os indivíduos permaneçam impunes por uma questão que é velada no país, o que para a autora, “as dicotomias em que assenta a compreensão ocidental do mundo são, pois, nutridas de uma lógica evolucionista, que sobrepõe diferença, inferioridade e anacronismo”. Como resultado, o direito espelha-se nas cinco monoculturas de razão metonímica, “associada às ideias de racionalidade, neutralidade, objetividade e justiça, a linguagem jurídica moderna assume, pois, um papel fundamental na legitimação do modelo dominante, colonial”, e isso contribui para que a linha abissal continue sendo existente entre a ideia de primitivo e civilizado.

O caminho para o pluralismo jurídico e o desafio ao pensamento abissal nesse julgado, está relacionado ao reconhecimento da ecologia dos saberes que envolve a rejeição das cinco monoculturas que o direito reproduz, e para isso é preciso “rejeitar o universalismo abstrato do direito moderno e propor um reconhecimento da pluralidade e a transformação das diferenças verticais em diferenças horizontais: (...) alarga o cânone jurídico, evocando a ideia de copresença radical, opondo-se a leituras evolucionistas assentes na monocultura do tempo linear”. E para a implementação dessa perspectiva é preciso ouvir a mobilização da comunidade LGBTQIA+ e do movimento negros, os quais representam a ecologia dos direitos e das justiças, representados pela a visibilidade, a copresença, a horizontalidade, a desglobalização do local relativamente à globalização hegemónica, e a recuperação de ordenamentos jurídicos que regulam sistemas produtivos que a ortodoxia jurídica capitalista não reconhece. Desse modo, para encontrar o resultado da discussão da injúria racial como racismo, é preciso incluir outras vozes que não se ouvem na sociedade civil hegemônica.  

 Ademais, o julgado apresenta os diferentes aspectos da razão negra, citada por Achille Mbembe, essencialmente, o do alterocídio, quando faz com que a ideia de injúria racial não se enquadre como racismo, é fazer com que reiteradamente no contexto racista como o Brasil, as inúmeras ofensas destinadas aos negros sejam fatores que perpetuam a intolerância com o diferente e a perpetuação do discurso de democracia racial, o que contribui para inúmeros indivíduos saem impunes; assim como o enclausuramento do espírito, que coloca o negro como uma mercadoria, e faz com que seus valores sejam relegados a um segundo plano. 

Fica claro, portanto, que a injúria racial deve ser enquadrada como racismo, tendo em vista que em um país racista como o Brasil, inúmeras ofensas à honra sempre são destinadas às pessoas negras, o que deixa evidente que o preconceito não está sendo encarado em sua devida forma, contribuindo para impunidade de inúmeros indivíduos e para a perpetuação do racismo estrutural fruto de uma cultura hegemônica. 

  

Natália Lima da Silva 
Turma: XXXIX, Matutino.

Nenhum comentário:

Postar um comentário