quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Reconhecimento da união homoafetiva: o direito viabilizador de outros direitos. Uma análise holística da Ação Direta de Inconstitucionalidade de número 4.277 à luz da contemplação dos clamores do presente, dos espaços dos possíveis e da magistratura do sujeito

 

A interpretação é, ao que tudo indica, uma das mais elementares e intuitivas ações dos seres humanos. Desde cedo, somos ensinados a utilizar sinais e referências para que nossos comportamentos possam ser orientados externamente. Os exemplos de ocorrência são inúmeros e, considerando o fato de que operadores do Direto são, também, seres humanos, a interpretação ocorre do mesmo modo na esfera jurídica, e, apesar de haver certas adaptações, a essência é preservada. A partir disso, emerge um empecilho: interpretações ilimitadas podem promover muita arbitrariedade nos julgamentos e, diante disso, deve haver certos limites. Um dos mais frequentes é a própria letra da lei, que é tida como o meio mais seguro de aplicação do Direito, posto que até mesmo as vírgulas utilizadas pelo respectivo legislador são mantidas durante o processo. No entanto, a segurança não denota necessariamente algo ideal, ao passo que, ao invés de guiar pragmaticamente toda a operação, a depender do contexto, o texto legislativo é capaz de restringi-la, inclinando-a a uma aplicação seletiva do Direito. Uma comprovação referencial do exposto é o quadro das uniões estáveis que são oficial e juridicamente reconhecidas a partir do prescrito no art. 226, § 3º, da Constituição Federal, bem como o que é abordado de forma complementar, ainda sobre o assunto de uniões afetivas, no art. 1.723 do Código Civil de 2002.

O referido dispositivo constitucional preconiza a ideia de que, para fins de preservação da unidade estatal, será reconhecida a união estável entre homem e mulher. Muito embora deixe de fazer menção a qualquer restritivo explícito que impeça qualquer outra variação quanto às possibilidades de combinações de gêneros durante a formação de uma união, tal artigo é capaz de estimular um polêmico debate: uniões homoafetivas podem ou não serem reconhecidas oficialmente pelo Direito? Para que o questionamento possa ser elucidado, cabe a análise de como distintos espaços dos possíveis abordam o assunto em pauta para que, a partir do conflito entre eles, possa ser elencada a solução mais adequada.

A priori, no que tange ao espaço jurídico dos possíveis, o Supremo Tribunal Federal, durante o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade de número 4.277, alegou que no caso do artigo constitucional referido não havia omissão legislativa e que, portanto, a norma havia sido direta e objetiva ao mencionar o reconhecimento de uniões entre homens e mulheres; ainda assim, zelando pelo atendimento das demandas e dos próprios preceitos constitucionais (tais como a não discriminação, também, no que tange aos gêneros), a Corte optou pela extensão do direito ao reconhecimento de uniões aos casais homoafetivos. A posteriori , o espaço moral e político dos possíveis apresentou ao quadro legislativo um novo dilema: o passar do tempo trazia consigo, ao lado da comprovação da existência de novos gêneros, novas formas de união, as quais não conseguiam obter a devida oficialização jurídica, posto que a lei havia sido teoricamente clara e, assim como qualquer ato legislativo, não havia previsto as novas demandas sociais posteriores a ela. Conclui-se, à luz do exposto, que alterações na realidade converteram o referido art. 226, § 3º, em algo que não se adapta a todos os quadros, de tal modo que conflitos entre a realidade e o previsto legalmente foram engendrados.

Tendo como base essa perspectiva, foram levantados debates contraditórios quanto à atuação do Judiciário nos casos em que os conflitos fossem reificados. Porém, é importante mencionar o fato de que as demandas dos casais não incluídos na prescrição dos artigos anteriormente mencionados (da Constituição Federal de do Código Civil) são pleitos que existem no momento presente e, portanto, não devem aguardar por uma provável alteração legislativa que venha a reconhecer um maior rol de possibilidades de união. Modificações em dispositivos legislativos não são realizadas de modo imediato ou facilitado; demandam certo tempo que não pode ser desperdiçado por aqueles que anseiam por amar, ainda mais considerando o fato de que nem todos (mais especificamente os defensores da interpretação excludente do artigo 226) se beneficiariam com a alteração, podendo, inclusive, dificultá-la.

Ademais, o espaço moral dos possíveis não é apenas utilizado no quadro por aqueles que pleiteiam uma expansão do Direito à união homoafetiva; ele é manejado até mesmo por aqueles que são contrários à expansão e esse manejo ocorre a partir da racionalização de alguns dos seus elementos para o espaço jurídico dos possíveis. Isso porque muitos que integram o último grupo (contrário à mudança) agem a partir de fatores morais e individuais, tal como a ideia de que desvios à cultura heteronormativa deveriam ser inadmissíveis – algo que é avalizado pelo espaço religioso dos possíveis. Por ser notório, nota-se que o âmbito moral e político possui uma ampla influência no quadro, sendo racionalizado para a esfera jurídica pelos defensores da medida e pelos contrários a ela.

 No que diz respeito aos defensores, preceitos do campo político (tais como a própria realidade) são somados a aspectos do campo jurídico (como o direito à dignidade e à integridade) e o resultado desta soma visa a promover dois importantes fatores: (i) universalização e (ii) neutralização do reconhecimento à união afetiva a partir da sua inserção oficial no ordenamento jurídico (seja por meio de uma alteração legislativa, ou pela atuação judicial, ou por ambas as formas). O ato de converter o reconhecimento em algo geral e oponível a todos torna-se ainda mais necessário, se analisado sob a perspectiva da tutelarização do Direito, mais especificamente a partir da expansão desse fenômeno para os demais indivíduos – considerando que a isonomia é um dos princípios regentes de todo a ordem constitucional brasileira. Por consequência, o ordenamento jurídico estaria à disposição para ser pleiteado e recorrido por todos (heterossexuais ou não) nos casos em que isso for indispensável.

A partir dos efeitos obtidos por meio do reconhecimento das uniões homoafetivas, ter-se-ia o fenômeno intitulado por Pierre Bourdieu de historicização da norma (no caso em análise, do supracitado artigo constitucional), expressa precisamente pela retirada desta do seu contexto original, trazendo-a para o presente e promovendo para tal transposição as adaptações necessárias – como uma interpretação expansiva do texto legislativo em razão das atuais demandas e limites do inaceitável. Diante disso, infere-se que a expansão da área de incidência do artigo em pauta não configura o fenômeno de antecipação de demandas, haja vista que, neste caso, as forças impulsionadoras do direito de reconhecimento à união homoafetiva são justamente pretéritas a ela, isto é, não se trata de uma presunção por parte dos juristas em prol de expansão da dignidade humana.

O ato de reconhecer e ratificar a união homoafetiva deve ser considerado como o que é: a devida atuação judiciária em nome da preservação dos direitos reconhecidos constitucionalmente. Assim como mencionado anteriormente, os avanços e as novas demandas sociais (em especial, as relativas ao quadro das sexualidades) são aspectos responsáveis por tornar a realidade atual distinta do contexto no qual os artigos anteriormente mencionados entraram em vigor e, diante de uma inércia legislativa em termos de propensão a não alteração dos dispositivos jurídicos, devem ser observados pelos juristas, a fim de que a ausência de palavras na lei, neste caso em específico, não provoque um sufocamento democrático. Claramente, considerando a busca pela preservação da harmonia entre os Poderes, não cabe apenas ao Judiciário e à sua interpretação o dever de proteção da integridade da pessoa humana; no entanto, a atuação por parte dele pode ser o estímulo necessário para uma retificação no próprio ordenamento por parte do Legislativo, no que tange ao quadro das uniões afetivas. O ponto fundamental é o seguinte: os casais homoafetivos não merecem esperar pelo legislador cordial realizar as alterações; enquanto elas não serem feitas de fato, o jurista deve realizar a sua defesa dos direitos constitucionais (dentre os quais estão o direito à integridade, a não descriminação e ao reconhecimento de uniões). Assim, não há interferências ou abusos no quadro da homeostase dos Poderes; há apenas um cenário no qual todos realizam as suas incumbências, contribuindo, assim, para a própria preservação democrática da sociedade.

Conclui-se, por fim, que o direito ao reconhecimento da união homoafetiva consiste em um meio de obtenção de diversos outros direitos. A partir dele, (i) a noção de magistratura do sujeito (enquanto meio de proteção) por parte do Direito é expandida para além das fronteiras da heteronormatividade, (ii) demandas atuais são contempladas, atualizando o ordenamento e tornando-o mais propenso à inclusão por adaptação, e (iii) ocorre a potencialização do regime democrático, tendo como base a noção de que ele depende diretamente das diferenças como forma de legitimação. Curioso é pensar na forma pela qual um direito reconhecido a uma parcela da sociedade é capaz de realizar alterações tão estruturais. Demandas surgem com o passar do tempo em um fluxo inevitável e, se prestarmos atenção, somos capazes de ouvir certos pilares antigos da sociedade ruindo. 

Mario Augusto Monteiro Filho

 


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