quinta-feira, 13 de outubro de 2022

As ideias de Pierre Bourdieu e Antoine Garapon aplicadas ao reconhecimento da união homoafetiva

 

Consideradas as diversas colocações feitas em outra oportunidade sobre as ideias do sociólogo Pierre Bourdieu e sua teoria do espaço dos possíveis em relação ao julgamento da ADPF 54 pelo Supremo Tribuanal Federal, podemos observar elementos que se repetem no caso do julgamento da ADI 4.277, sobre a impossibilidade, até o momento de sua propositura, das uniões estáveis homoafetivas se converterem em casamento, o qual era, de todas as formas, inacessível à população homossexual.

De maneira similar ao que ocorreu na discusssão do aborto de feto anencéfalo, o próprio fato da questão da união homoafetiva ser judicializada nos permite uma visão mais otimista do espaço dos possíveis. Porém, ao mesmo tempo, observa-se que, apesar da ação cada vez mais intensa do Judiciário no sentido de conceder direitos, o debate público é pouco receptivo, quiçá cada vez menos receptivo, a essas pautas.

Dessa forma, existe aí uma grande ambivalência, que parece se repetir em tantos dos casos de decisões do STF, na posição dos direitos da comunidade LBTQIA+ no espaço dos possíveis: ao passo que a decisão da Corte Suprema constituiu um necessário – e retardado sobremaneira, diga-se de passagem – avanço no campo dos direitos dessa população, ela nos revelou um espaço ainda muito fechado a quaisquer questões concernentes à comunidade.

Na questão do reconhecimento da união homoafetiva como instituto jurídico pelo STF, no entanto, além da sensibilidade que uma parcela da população apresenta ao direito em si, existe a polêmica em torno dos meio pelo qual ele veio a ser positivado. Nesse sentido, o principal argumento é o de que o meio legítimo para o reconhecimento dessa união é a emenda à Constituição tal qual esta a previu, e não uma nova interpretação de seu texto pelos magistrados da suprema corte – fenômeno, aliás, que parte da doutrina denomina mutação constitucional.

Encontramos uma brilhante resposta a esse argumento na obra do jurista francês Antoine Garapon  "O juiz e a democracia", de 1996, em que é abordada uma situação na França da década 1990 notadamente similar ao que se verifica no Brasil de 2022: ao juiz não é reconhecida a plena dignidade democrática, nas palavras do autor. Com efeito, observamos com frequência críticas fevorosas à atuação de nosso Judiciário, sobretudo do Supremo Tribunal Federal, apoiadas principalmente em sua natureza supostamente antidemocrática: ele delibera sobre questões que interessam ao debate público de forma independente do posicionamento que predomina neste. Além, naturalmente, do fato de que esses magistrados são indicados pelo Presidente da República, que é representante eleito da população, é necessário lembrar que aquilo que se entende por democracia, bem como todas as estruturas que a compõem, estão tão sujeitos à mudança quanto quaisquer outros elementos da vida humana. A lei deve acompanhar essas mudanças, e não ficar estagnada no tempo, sendo entendida sempre da mesma forma, através de gerações e gerações, sob o risco de gerar incompatibilidades entre a norma e o contexto em que existe a norma por vezes tão grotescas que beirem o ridículo. Aqui, cabe lembrar a lição do ministro Luís Roberto barroso: “O Direito não existe abstratamente, fora da realidade sobre a qual incide. Pelo contrário, em uma relação intensa e recíproca, em uma fricção que produz calor mas nem sempre luz, o Direito influencia a realidade e sofre a influência desta.” (BARROSO, Luís Roberto. Mutação constitucional. Revista Jurídican In Verbis.)

Garapon elabora brilhantemente essa ideia revelando o novo paradigma de democracia que vinha se estruturando em diversos países à épca da concepção do livro e que continua a estruturar-se: uma democracia em que a justiça possui maior poder, em que o sujeito se volta para ela em uma tentativa de lidar com o seu "desabamento interior". A respeito dessa nova estrutura democrática, leciona o jurista: "A vontade geral não pode mais pretender ter o monopólio da produção de direito, mas deve tornar-se compatível com os princípios contidos nos textos básicos (...) O direito não está mais, portanto, à disposição da vontade popular."

De fato, Garapon argumenta que não nos encontramos mais naquela situação em que o juiz deve ser apenas a "boca da lei", nas palavras de Montesquieu: a lei, antes, não se confunde com o direito, embora seja um componente de suma importância – o juiz deve agora recorrer a fontes externas a ela para decidir. "Enquanto que, na concepção clássica, o juiz é sujeito à lei e só exerce seu direito de julgar através dela, ele tende, no presente, a elevar-se acima da lei para tornar-se o porta-voz do direito."

É também digna de nota a confluência entre essas ideias de Garapon sobre o papel do juiz – mais rigorosamente, os juizes, na sua multiplicidade que ele faz questão de destacar – e a visão de Bourdieu do campo jurídico como duplamente determinado: por um lado pelas pressões externas e, por outro, pela sua própria lógica interna, em que as obras jurídicas delimitam o tempo todo o espaço dos possíveis.

A abundância tanto de críticas quanto de elogios à atuação do Supremo Tribunal Federal em questões como a ADI 4.277 remete muito claramente à "luta simbólica permanente na qual se defrontam definições diferentes do trabalho jurídico enquanto interpretação autorizada dos textos canônicos" de que fala Bourdieu em “O Poder Simbólico”. O sociólogo também nos lembra que, em cada subespaço, dominantes e dominados estão em uma luta constante que assume diferentes formas, e nem por isso são antagônicos entre si. Nessa rejeição da perspectiva marxista da relação entre dominantes e dominados, que para Bourdieu cria um mundo social unidimensional, quando este é na realidade um espaço multidimensional, é possíver ver um outro paralelo com Garapon, que observa, com notável sabedoria, que nós "Só podemos sair desta oposição dramatúrgica entre a soberania popular e os juízes, de que fala Jacques Lenoble, se concluirmos que a transformação do papel do juiz corresponde à transformação da própria democracia."

De fato, a atuação do Judiciário em causas como a união homoafetiva não se trata de uma instância usurpar poderes de outra, mas da própria ressignificação da democracia e da soberania popular. A luta pelo direito de dizer o direito, nas palavras de Bourdieu e em concordância com Garapon, é condição própria e inexorável da sociedade democrática. Podemos constatar, felizmente e graças às tantas lutas sociais travadas nos últimos tempos, que em nossa democracia se admite cada vez menos o viés de marginalização das minorias e se adota, em seu lugar, o entendimento – como fez inclusive o STF no julgamento da ADI em questão – de que é direito de todos a busca da felicidade, direito que não poderá ser restrito por uma visão formalista do Direito que impeça a atuação de fato legítima do Judiciário em questões como esta, em que está em jogo a concessão de direitos essenciais à dignidade da pessoa humana.

Helena de Battisti Almeida

 

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