sábado, 29 de outubro de 2022

 

A ADO 26 e a criminalização da homofobia

                    Saymon de Oliveira Justo 1º Direito Noturno.

 

A ADO 26 (Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão), julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 13/06/2019 trata da criminalização da homofobia. Provocado pelo Partido Popular Socialista, o Supremo julgou procedente a ação proposta pelo PPS e equiparou a homofobia a outros crimes como xenofobia e racismo. O acordão, de relatoria do Ministro Celso de Mello, reconhece a “mora inconstitucional do Congresso Nacional na implementação da prestação legislativa destinada a cumprir o mandado de incriminação a que se referem os incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição, para efeito de proteção penal aos integrantes do grupo LGBTI +”. Diz ainda o referido acordão que até que venha legislação própria do Congresso Nacional que criminalize práticas homofóbicas e transfóbicas, tais práticas “ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989 (...)”.

Na própria ADO vislumbramos alguns dos conflitos presentes no litígio. Entre os vários amicus curiae que figuram na ação percebemos organizações ligadas ao movimento LGBTQIA+, como o “Grupo Gay da Bahia”, a “ABGLT - Associação de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais”, o “GADVS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual” e também organizações ligadas às religiões, como a “ANAJURE - Associação Nacional de Juristas Evangélicos”, a “COBIM - Convenção Brasileira das Igrejas Evangélicas Irmãos Menonitas”, entre outros. Aliás, a própria argumentação do relator ao defender a procedência da demanda do Partido Popular Socialista explicita esse conflito quando diz que “A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa (...) desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero”.

Refletindo sobre a presente ADO sob a perspectiva de “espaço dos possíveis” de Pierre Bourdieu, a decisão do Supremo Tribunal Federal promove um “alargamento” do espaço dos possíveis dentro das possibilidades da própria Constituição Federal e de acordo com as demandas colocadas pelas mudanças no corpo social, ou seja, promove também uma historicização da Norma Constitucional. A Seção II da Constituição Federal, que trata da especificidade e atribuições do Supremo Tribunal na organização do Estado brasileiro, deixa claro seu papel de tribunal de controle de constitucionalidade. Nesse sentido, ao agir sob provocação de um ente autorizado para tal no próprio texto constitucional (no caso um partido político com representação no Congresso Nacional) e de acordo com as prerrogativas do Artigo 102 da Constituição Federal, que autorizam o referido Tribunal a “processar e julgar, originariamente: (...) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal”, percebemos que o Supremo não extrapolou os limites da Constituição Federal, apenas agiu dentro do chamado “espaço dos possíveis”.

Quanto às manifestações de “universalização/neutralização”, conceitos esses também abordados por Pierre Bourdieu, a própria argumentação implícita na decisão dos Ministros, de que o Brasil é um Estado laico e que ao mesmo tempo em que deve respeitar toda e qualquer manifestação religiosa, ele mesmo, o Estado nacional, não pode pautar sua legislação no interesse dessa ou daquela fé religiosa, demonstra o caráter de universalização/neutralização da decisão. Ao argumentar que nenhuma manifestação religiosa pode incitar o ódio ou a violência contra pessoas “em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero”, o que o Supremo Tribunal está dizendo é que a lei é neutra e universal, não cabendo exceções a nenhuma religião ou a qualquer outro grupo político, cultural, social...

Apesar de já existir dispositivo constitucional versando sobre a discriminação de forma genérica, como o Artigo 5º inciso XLI que diz que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” e de existir também as punições específicas para crimes de forma geral no Código Penal, podemos compreender a ADO 26 como uma historicização da norma em relação às demandas dos novos tempos. A comunidade LGBTQIA+, tradicionalmente alvo de preconceitos, agressões e muitas vezes tendo suas expressões de amor restringida nos espaços públicos, nos últimos anos, em razão de sua luta, vem ganhando espaço nas ruas, nas artes, no marketing das empresas... Com isso, segue-se também uma intensificação dos atos de agressão físicos e verbais de forma mais aberta. Nesse contexto, o entendimento da ADO 26, que equipara a homofobia ao racismo, cria novos mecanismos e possibilidades de combater as manifestações desse tipo de preconceito de forma mais concreta e dentro das possibilidades da Constituição Federal.

Quanto as frequentes críticas de “ativismo judicial”, ou seja, de que o Judiciário estaria tomando para si prerrogativas do Poder Legislativo, isso parece não se justificar. A própria Constituição Federal, como citamos anteriormente, permite ao Supremo Tribunal Federal agir quando provocado e julgar atos os quais o Legislativo se mostrou omisso. Além disso, a ADO 26 não criminaliza ato novo, mas tão somente explicita e especifica crimes já tipificados na Constituição Federal e no Código Penal no intuito de instigar o poder público a proteger uma população vulnerável específica e permitir a criação de novos mecanismos de proteção.

O que percebemos no referido julgado é o que Antoine Garapon denomina de “magistratura do sujeito”, ou seja, uma população quase completamente apartada da proteção efetiva do Estado se vê na necessidade de mobilizar o judiciário como única forma possível de defender seus direitos e em muitas ocasiões a própria vida. Apesar da legislação geral, tanto constitucional como infraconstitucional, que define o que é crime e quais as penalidades, essa legislação se mostra insuficiente para proteger na prática a população LGBTQIA+. Nesse sentido, ao ser provocado por setores legítimos da sociedade, o Supremo Tribunal Federal, dentro das possibilidades do texto constitucional, equipara a homofobia ao racismo e dessa forma possibilita uma maior possibilidade da tutela dos direitos fundamentais da população LGBTQIA+.

A referida ADO não apresenta ameaça alguma para a democracia, uma vez que já foi largamente demonstrado que além de a decisão encontrar abrigo na Constituição Federal, essa mesma Constituição coloca os limites de ação do Supremo Tribunal Federal, que no presente caso, atua tão somente dentro das atribuições que lhes foram dadas pelo Poder Constituinte Originário. Aliás, atua por conta da omissão do Poder Legislativo. Nesse sentido, a ADO 26 tão somente ampara um direito de característica mais geral tutelado pela Constituição, mas que na prática não alcança a população em questão.

Assim, ao percebermos diversos atores da sociedade civil, como o propositor da ação, no caso o Partido Popular Socialista e os Amicus Curiae, que figuram na ADO, o que fica explícito é a mobilização do direito para um aprofundamento da democracia. Ou seja, uma vez que o texto constitucional genérico não consegue dar amparo efetivo às demandas da população LGBTQIA+, a equiparação da homofobia ao crime de racismo, a criminalização específica da homofobia, transcende as possibilidades dos chamados direitos de primeira dimensão e permitem uma defesa mais efetiva dessa população, um efetivo aprofundamento da democracia.

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