segunda-feira, 29 de agosto de 2022

A óptica de Pierre Bourdieu na ADPF/54

 A ADPF 54 discorre sobre a interrupção terapêutica da gestação em casos de fetos anencéfalos. Julgada pelo Supremo Tribunal Federal, a arguição com ação ajuizada pela pela CNTS (Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde), que visa a defesa da saúde bem como da autonomia da mulher, pode ser estudada e analisada sob a ótica de Pierre Bourdieu, um expoente de suma importância para os estudos do campo jurídico e sua configuração estrutural. 

O conceito de “espaço dos possíveis”, concretizado pelo francês, abrange o âmbito jurídico como um todo; tudo aquilo que seria coerente e cabível para o Direito insere-se nele, e representando o território entre a razão e a moral, há um conflito de percepções sobre tal. No contexto analisado, aqueles contra a ADPF em questão são influenciados, em sua maioria, pela tradição conservadora social e político-jurídica bem como pela teoria concepcionista sobre a origem da vida, visando a proteção da potencial vida do nascituro e a criminalização da gestante que optar pela realização da interrupção voluntária da gravidez, ainda que de forma clandestina, e se sustentam pelo Código Penal brasileiro que nos respectivos artigos 124, 125 e 126 tipifica como crime tal ato. Já aqueles a favor, além de apoiadores da teoria natalista, a qual reconhece a vida após o parto e a primeira respiração, inserem-se como defensores do direito à autonomia da mulher, à liberdade e à dignidade da mesma. 


 A ADPF foi julgada procedente pelo STF por 8 votos a 2 e uma abstenção e permitiu, a partir de então, a interrupção voluntária e terapêutica da gestação nos casos de anencefalia do feto. A decisão contou com argumentações importantes no que concerne à racionalização do direito e de conceitos, uma vez que a concepção de dignidade da pessoa humana, por exemplo, que fora utilizada em primazia para a defesa do nascituro, foi utilizada de forma a favorecer as mulheres e garantir sua autonomia, sendo mobilizada para tal.  Ademais, com tal decisão, instaurou-se a possibilidade de um precedente para a descriminalização do aborto no país, já que foi possibilitado que a mulher, em mais uma situação, possa decidir sobre sua vontade e sobre seu corpo, com a palavra de Gilmar Mendes em seu voto “Não parece tolerável que se imponha à mulher tamanho ônus na falta de um quadro para resolver essa questão”. 


Em conclusão, o direito pode se adequar às mudanças e reivindicações sociais e, como exposto por Bourdieu, deve constituir-se de um fato da realidade e refletir a sociedade em que está inserido. Ainda que haja um caminho a ser percorrido em prol dos direitos das mulheres nesse âmbito, a decisão da ADPF/54 inicia os caminhos para a expansão do espaço dos possíveis a fim de que se obtenha o direito de forma universal. 


Ana Laura Murari Silva 

1o Direito - Matutino 


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