segunda-feira, 4 de julho de 2022

 A eterna contradição humana

  O ser humano é definido por suas contradições. Na literatura, por se buscar a captura simbólica de valores, ideais e ações universais à Humanidade, observa-se a presença recorrente dessa temática. Como exemplo, figura o conto “A Igreja do Diabo", de Machado de Assis, que tem como narrativa principal a tentativa do diabo de fundar uma igreja própria, com regras de sua autoria, baseada em uma negação sistemática das leis divinas. Com o passar do tempo, narra-se como o diabo logo conquista uma vasta legião de seguidores, atraídos pelas facilidades de prática dos vícios em relação às virtudes e fidelizados pela validação de seus impulsos mais animalescos. O resultado final da liberdade de culto de tais valores deturpados, contudo, surpreende o próprio diabo: uma vez que há uma inversão coletiva de princípios, muitos fiéis da nova igreja passam a praticar boas ações, moralmente alinhadas com os valores de outrora, escondidos. Irritado e confuso com as transgressões, o diabo questiona o próprio Deus sobre a motivação incompreensível do homem aos seus olhos, ao que recebe como resposta conclusiva da divindade: “É a eterna contradição humana”.

Nesse sentido, é perceptível como o conflito e a complexidade na formação do indivíduo e na influência de suas ações é amplamente abordada na filosofia e literatura- da filosofia do confronto entre as tendências apolíneas e dionisíacas de Nietzsche à multifacetada construção psicológica do protagonista de “Angústia”, de Graciliano Ramos; abundam exemplos nessas áreas que exploram a complexa teia de relações e influências que constroem o caráter humano e suas atitudes. Em oposição a essa análise de especificidades, na sociologia observou-se por muito tempo uma lacuna quanto a tentativa de compreensão do indivíduo, focando-se demasiadamente no conceito abstrato de coletividade e buscando estabelecer ideais e justificativas generalizadas a grupos muito extensos e plurais. Max Weber, intelectual alemão, foi um dos primeiros teóricos do estudo da sociedade a romper com essa perspectiva: Weber defendia o que apelidara de “sociologia compreensiva”, uma análise pautada no entendimento aprofundado dos valores, contextos e influências culturais que motivariam o sentido das atitudes socialmente significadas, as “ações sociais”. Assim, tecia duras críticas à concepção materialista de tentativa de estabelecimento de uma conduta dos grupos sociais, definindo valores e atitudes generalizadas a todo um grupo pautado na ideia de “consciência de classe”- Weber acreditava que a ciência não deveria tentar “ensinar” os sujeitos, mas sim compreendê-los.

Como constatação do pensamento de Weber, pode-se facilmente perceber no Brasil contemporâneo como muitas vezes um entendimento restrito a um único âmbito da vida dos indivíduos, como a partir de suas classes sociais ou identitárias, pode não ser suficiente: muitos indivíduos agem a partir de interesses que prejudicam diretamente a si próprios e a sua coletividade, motivados por justificativas contextuais e culturais particularizadas. Exemplo nítido dessa situação é o considerável apoio prestado por grupos pertencentes a minorias sociais ao atual presidente Bolsonaro, apesar de suas reiteradas falas e comportamentos que ameaçam a própria existência destes. Frases como “Seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui: prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo”1 não impedem que 29% dos LGBTs constituam seu eleitorado2. Sua constatação que “Eu tenho cinco filhos. Foram quatro homens, aí no quinto eu dei uma fraquejada e veio uma mulher”3 não impediu movimentos como “Mulheres com Bolsonaro”4. A explicação para tais fenômenos só pode ser construída a partir dos âmbitos psicológicos e culturais dos indivíduos analisados, possivelmente influenciados por uma criação moral conservadora e alinhada com muitos dos valores defendidos pelo presidente, ainda que de maneira contraditória com a sua própria identidade.

Portanto, como observado por Weber, as ações dos sujeitos possuem um sentido que se justifica por valores construídos de forma complexa, por vezes até contraditória. Somente em uma perspectiva compreensiva, atenta ao contexto e às construções simbólicas, é possível traçar uma lógica das ações sociais e, como consequência, das relações que constituem a sociedade- “É a eterna contradição humana”.


¹. “O que Bolsonaro já disse de fato sobre mulheres, negros e gays”, El País, 2018.

<https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/06/politica/1538859277_033603.html>

². “Por que 29% dos LGBTs votam em Bolsonaro?” El País, 2018.

<https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/27/opinion/1540592921_823943.html

³. “Relembre declarações com ofensas às mulheres feitas pelo presidente e a família Bolsonaro”, O Globo, 2022,

<https://oglobo.globo.com/politica/relembre-declaracoes-com-ofensas-as-mulheres-feitas-pelo-presidente-a-familia-bolsonaro-25423642

⁴. “Grupo "Mulheres com Bolsonaro" reúne mais de 440 mil integrantes em dois dias”, Época Negócios, 2018,https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2018/09/grupo-mulheres-com-bolsonaro-reune-mais-de-440-mil-integrantes-em-dois-dias.html >


Isabella Neves- 1º ano matutino

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