segunda-feira, 4 de abril de 2022

Legados de pensadores e grandes problemas a afligir a humanidade

 

O filme O Ponto de Mutação, dirigido por Bernt Capra, traz uma discussão de imensa relevância a respeito das implicações da visão acerca da natureza que o filósofo René Descartes apresentou ao mundo. Nele, uma dupla de amigos, formada por um poeta, Thomas, e um político, Jack, conversa enquanto caminha pelo encantador Mont-Saint-Michel, e não demora a juntar-se a eles uma física, Sonia, a qual, ao longo do colóquio, ocupa-se de apresentar e fundamentar a sua grande preocupação com uma parte essencial do legado de Descartes. 

O fato da natureza ter passado a ser vista do mesmo modo com que se vê um relógio, fato esse que se deve, em muito significativa parte, à obra do filósofo, teve profundos impactos na humanidade — a notável aceleração do progresso técnico-científico a partir da consolidação de ideias sobre a natureza e a razão humana defendidas por pensadores como Descartes e Bacon sugere tal impacto, embora possa ser um exagero caracterizá-la como prova dele. A personagem reconhece isso e, embora consiga apontar algo de positivo no legado de Descartes (sua enorme contribuição para a desvinculação do pensamento humano da Igreja), ela volta sua atenção para os sérios prejuízos que considera que conceber a natureza como uma máquina trouxe à humanidade. Esta, para Sonia, está condenada a debruçar-se sobre questões de vultosa gravidade, como a fome e a devastação ambiental, sem produzir quaisquer resultados verdadeiramente significativos, enquanto for afetada pela "crise de percepção", para usar suas palavras, ocasionada por essa concepção da natureza. Recorrendo a constatações relativamente recentes da física para fundamentar seu argumento, a personagem afirma que a natureza não deve ser subdividida para que se investigue cada uma de suas partes e depois se junte as conclusões obtidas e acredite-se haver entendido o todo, como se fosse uma máquina, mas deve ser tratada como um imenso sistema, porque, devido às características das partículas subatômicas, toda a matéria que existe é um conjunto de interconexões. Disso decorre, segundo Sonia, que os grandes problemas a afligir a espécie humana devem ser abordados em conjunto, e não isoladamente. 

É  interessante notar que as descobertas da física que fundamentam essa ideia da natureza como sistema adotada por Sonia foram obtidas por meio do método científico, cuja origem se deve justamente a pensadores como Descartes. Da mesma forma, não se pode falar em surgimento do método científico sem citar Francis Bacon. A defesa que este fez de uma razão que se apoiasse na realidade, em fatos constatáveis, para funcionar de modo eficiente, assim como da destruição de ídolos, isto é, de tudo aquilo que impede a clareza na percepção da realidade, que impede a percepção da verdade, fundamenta toda a ideia que se tem hoje a respeito da experimentação e da intepretação de seus resultados. Assim como ele, Descartes também defendia a compreensão da realidade fundamentada na razão e a preocupação em certificar-se de que ela não seja obscurecida por prenoções, mas a Descartes cabe especialmente o crédito de defensor de um modo —  um método —  de compreender a realidade em que a compreensão comece por investigações menores, pela investigação de uma parte de um todo, e seja seguida pela investigação de partes cada vez maiores, até que se chegue ao todo. 

Tendo em vista tal contradição, eu não sou capaz de dizer até que ponto Sonia está certa em sua crítica a Descartes. Quanto a suas queixas sobre a forma com que são abordados os problemas do mundo a e a sua defesa de uma outra, tudo o que posso afirmar é que incorre em grave erro todo aquele que acredita ter a resposta para como o mundo pode ser melhorado, tenha ela fundamento cartesiano, tenha ela fundamento na física das partículas subatômicas e na ideia de sistemas interconectados que dela decorre, sem que tenha antes encontrado respostas para problemas fundamentais de sua própria vida. Essa visão é eloquentemente expressa ao final do filme pela personagem Thomas, em um monólogo com referências a Enigmas, de Pablo Neruda, poema que acabara de recitar: "Isso a lembra de alguma coisa? 'Caminhei por aí, investigando a estrela sem fim?' Não é isso o que você faz, Sonia? 'E em minha rede, durante a noite, eu acordei nu.' Não é isso o que você faz, você não pega a sua rede e a joga nesses lugares longínquos da física quântica, e teoria dos sistemas, e... E você não conclui que a única coisa que você pega é você própria de novo? 'Como um peixe preso dentro do vento'... Onde estão as outras pessoas no seu sistema, Sonia? As que você ama? (...) Então diga-me, Sonia, onde estamos todos nós nisso? As pessoas reais, com suas qualidades, suas aspirações, suas fraquezas...? Onde está você dentro disso, Sonia? Onde está a Kit? Sabe, cientistas podem nos dizer quais são as metáforas internas da vida, quer sejam chips de computador, quer sejam relógios, os políticos podem nos dizer que forma nossas vidas deveriam tomar, mas...  Eu me sinto tão reduzido sendo chamado de um sistema quanto eu me sinto sendo chamado de um relógio. A vida simplesmente... Simplesmente não é condensável. Um grupo de pessoas usa um conjunto de palavras para mudar o mundo, e um outro grupo de pessoas chega com conjunto diferente de palavras para mudá-lo, e... Eu não ligo, sabe? É tudo a mesma coisa para mim. Eu não ligo nem um pouco. É como as estações mudando. (...) Mas lembrem: a vida sente a si mesma. A vida sente a si mesma. Diferentemente, talvez, de todas as suas palavras para como geri-la. E mesmo com as melhores intenções do mundo, você vai errar se você esquecer que a vida... a vida, a vida, a vida, a vida é infinitamente mais do que as suas ou as minhas teorias obtusas sobre ela. Curar o universo é um trabalho que vem de dentro  — e você me ajudou."

Como exprime a personagem, especulações, reflexões a respeito da vida, tanto da vida enquanto entidade, quanto de vidas individuais, mergulhadas em toda sorte de mazelas, têm valor: elas nos ajudam a "curar o universo" (pretensão aceitável se, e somente se, a expressão é entendida como uma metáfora que se refere a solucionar problemas que afligem criaturas ao redor do mundo, pois a ideia de que o universo em si ou mesmo o mundo em si careça de uma cura, como se algo estivesse errado em sua essência, é absurdo delírio, gênito da mais pura arrogância.) Não se chega a uma resposta satisfatória a qualquer pergunta sem reflexão. No entanto, cada indivíduo deve ter a humildade de primeiramente deter-se nos muitos problemas, perguntas, que diretamente lhe dizem respeito, ou que não necessariamente afligem a ele próprio, mas cuja solução ou princípio de solução está ao seu alcance  — valendo-se para isto, inclusive, não só de si mesmo, mas também das reflexões que já fizeram tantos outros indivíduos, do conhecimento que pode adquirir de outros — para só então talvez ter a ousadia de considerar-se detentor de soluções para os problemas de âmbito global. Sou da opinião de que, na maior parte dos casos, melhores resultados são obtidos  quando um indivíduo ocupa seu tempo alimentado indigentes de seu bairro que quando o ocupa em acaloradas discussões a respeito de qual o caminho para a erradicação da fome na África. Porque a maioria das pessoas não têm o poder de tirar da situação de fome nem aqueles ao seu lado, tanto menos os que se encontram tão distantes de si. (Elas poderiam enviar dinheiro para uma instituição que prometa fazê-lo, mas deve-se considerar que é prudente não confiar plenamente em instituições com tamanha pretensão, lidando com tanto dinheiro e cujos líderes e funcionários o indivíduo pouco ou nada conhece, e que, portanto, é melhor ajudar alguém de forma mais direta, de forma que permita ao indivíduo ver a quê o dinheiro em que consiste a ajuda é destinado.) Além disso, observo que um indivíduo pouco preocupado em resolver os problemas de sua vida pessoal muito dificilmente chegará, por meios idôneos, a uma posição que o permita ter grande influência e, mesmo que chegue, não terá competência para resolver os grandes problemas — como se pode esperar que ofereça soluções para conjunturas de tão difícil compreensão e com tantos fatores envolvidos quanto uma guerra entre nações, aquele que não faz ideia de como viver em paz com o seu próprio filho? Ou, nas palavras de Thomas, "Onde está você dentro disso, Sonia? Onde está a Kit?"

Não posso dar este comentário por encerrado sem citar uma outra sabedoria proferida pelo poeta Thomas: "Eu sou um tolo." Faço esta citação para reconhecer que posso estar enganada quanto a tudo o que aqui afirmei. A bem da verdade, sou uma grande ignorante. Tanto o sou, que o meu maior mérito é ter compreendido ou, pelo menos, julgar ter compreendido, uma ideia já conhecida e já célebre mais de dois mil anos antes de meu nascimento: "só sei que nada sei". Não obstante toda a minha ignorância, eu acredito ter algo de valor para dizer, porque, afinal, é algo que decorre do próprio reconhecimento desta ignorância; não é muito mais do que isto: que todo aquele que por ventura — ou desventura: como queira — ler este texto saiba que muito provavelmente é um grande ignorante, e que ele amplia seu valor e  adquire a possibilidade de discutir grandes problemas com alguma sombra de legitimidade somente à medida que se ocupa de sair de sua ignorância, isto é, de aperfeiçoar o funcionamento de sua razão, fornecendo-lhe matéria-prima e garantindo o bom funcionamento de suas engrenagens, o que acontece não somente por meio da reflexão e do estudo em sentido estrito, mas também por meio da busca de soluções para os problemas da própria vida, para os problemas de natureza pessoal.

 Encerro, afinal, o comentário, reforçando a ideia que julgo ser de singular importância, por meio de palavras que tomo emprestadas a Paulo de Tarso: "Não sejam sábios aos seus próprios olhos."

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