sábado, 26 de março de 2022

Pensar e existir: entre sair da caverna e ser enganado

            Final do século XX: começam a surgir indícios de um período que mudará para sempre a forma com que a humanidade se relaciona com informações e conhecimento. Eis que se tem início a Terceira Revolução Industrial, também chamada de Revolução Técnico-Científica e Informacional. Vejamos seus desdobramentos já no século XXI: quantidades exorbitantes de informações são despejadas diariamente sobre os usuários da internet, os quais não conseguem filtrá-las. Surge então uma das maiores complicações advindas com o surgimento de tantas facilidades tecnológicas: as fake news. Ora, se tal complicação surge de algo tão benéfico para sociedade, isto é, a facilidade de acesso à informação, há uma salvação para não ser enganado enquanto se desfruta de tantas ferramentas? Tal questionamento é análogo a outros na busca de conhecimento ao longo da história.

                França, século XVII: um homem está diante de uma angústia contraditória. Analogamente ao processo paradoxal de desinformação por conta do acesso massivo à informação, René Descartes notou que sua ignorância se tornava cada vez mais nítida após tantos estudos durante a juventude. Entretanto, em sua obra “Discurso do Método”, surge uma saída para a crise do conhecimento: a dúvida. Após constatar que “deveria rejeitar como totalmente falso tudo aquilo em que pudesse supor a menor dúvida, com o intuito de ver se, depois disso, não restaria algo em meu crédito que fosse completamente incontestável.”, Descartes chega em sua famosa máxima “eu penso, logo existo”. Há, portanto, uma negação dos sentidos humanos como ferramenta para alcançar o conhecimento, visto que a racionalidade seria a ferramenta necessária para tanto. Assim sendo, trazendo tal pensamento para nossa questão contemporânea, poderíamos concluir que sem a clareza da racionalidade e sob influência de noções adulteradas por sensações enganosas, as mentiras encontrariam espaço para sua livre circulação ao não serem questionadas.

                Passemos agora para o território inglês também do século XVII. Nele, o filósofo Francis Bacon também busca uma base para a ciência. Em sua obra intitulada “Novo Organum” – já nomeada com o intuito de ir contra os preceitos postulados pela obra “Organon”, de Aristóteles- o pensador moderno demonstra seu desejo por uma nova forma de se chegar ao conhecimento. Indo contra princípios medievais e da antiguidade, o filósofo objetiva uma praticidade da ciência a partir do desprezo pelas questões metafísicas. Com o chamado método empírico-indutivo, Bacon busca valorizar as experiências para se chegar à verdade, dado que são necessárias para direcionar nossa mente ao conhecimento, distanciando-nos dos ídolos, definidos pelo autor como bloqueadores da mente humana. Paralelamente com a atualidade, Bacon poderia afirmar que a manipulação humana por notícias falsas seria de responsabilidade dos ídolos da caverna, considerando que são erros relacionados a leitura e a interpretação do mundo.

                Entretanto, vale ressaltar também uma ruptura com uma visão chamada “mecanicista” do mundo. No filme “O Ponto de Mutação”, dirigido por Bernt Capra, a cientista Sonia Hoffman caracteriza como “crise de percepção” o fenômeno de enxergar o mundo e seus eventos sociais e políticos como uma mera máquina. Para ela, há uma interdependência entre os acontecimentos cotidianos que tendem a gerar os problemas sociais. Por exemplo, à luz desse pensamento, poderíamos dissecar a problemática da disseminação de falsidades como uma crise da educação, visto que, por conta da falta de escolaridade e acesso à meios confiáveis de informações, grande parte da população tende a acreditar e compartilhar fatos enganosos, de modo que um problema esteja diretamente ligado ao outro.

               Observa-se, portanto, a atemporalidade dos pensamentos citados. Surgidos com o intuito de compreender o mundo de suas respectivas épocas e melhorar a forma de se obter conhecimento, tais filosofias podem hoje ser observadas como indicadoras das causas e consequências de mazelas, sob o exemplo das fake news citadas. Seja por falta da racionalidade cartesiana, por enganações dos ídolos de Bacon ou, de acordo com Hoffman, por uma cegueira em relação a correlação de problemáticas, as fake news são um obstáculo para sairmos da caverna de Platão e atingirmos, por conseguinte, a maioridade kantiana.

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