segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Massacre do Pinheirinho e as exclusões abissais pela primazia do Direito

 Resumo do caso real: A massa falida da empresa Selecta impetrou ação de reintegração de posse de terreno localizado em São José dos Campos/SP. A ação julgada procedente pelo TJ-SP, que organizou, com os braços armados da Polícia Militar Estadual e apoio da Guarda Civil Municipal local (cidade que não recebeu durante 11 anos), a expulsão de 6 mil pessoas pobres (1/3 de crianças). De acordo com o Sindicato dos Advogados de São Paulo, a barbárie foi também jurídica: não se sabe como o terreno cambiou-se em propriedade da Selecta (pertencente à família de Naji Nahas), a empresa não exerceu em nenhum momento a posse do terreno (confusão nos conceitos de posse e propriedade), a ordem de reintegração de posse foi deferida em período inadequado processualmente e em nenhum momento foi possível identificar a função social da propriedade.

Adiciona-se aos pontos acima elencados que tramitava a regularização fundiária nas três esferas, bem como a União promoveu ação para que não houvesse o desalojamento das famílias do local. Mas a juíza estadual e o presidente do TJ-SP autorizaram a pancadaria policial nos moradores do terreno. No dia da ocupação, nova ordem federal impedia a reintegração, ordem esta descumprida pelo TJ Estadual. Raquel Rolnik, urbanista e observadora da ONU para assuntos relacionados à moradia urbana, promulgou apelo urgente pela injustiça do caso.

Por fim, o Sindicato dos Advogados de São Paulo informa que o caso do Pinheirinho não é isolado – sem teto ocupando imóveis na região da Cracolândia em São Paulo e terrenos indígenas invadidos por fazendeiros no Mato Grosso do Sul guardam semelhança pela truculência dos donos do poder econômico e pela conivência do Judiciário em não exercer de forma responsável a função social do Direito. 

Na decisão favorável à massa falida pela reintegração de posse, a juíza invoca um direito inviolável da propriedade esbulhada pelos moradores, pertencentes a um movimento invasor, bem com que não cabe ao Judiciário negar à massa falida o direito de esta dispor do terreno. A decisão, ainda, despreza as negociações federais de tornar o terreno de interesse social para fins de desapropriação. 

A decisão, de forma adicional, discorre a respeito dos direitos de propriedade e de moradia em nível hierárquico igual. E manda oficiar, com urgência, Prefeitura Municipal, todos os juízes de São José dos Campos, Polícia Militar local e Ministério Público.

Posteriormente à decisão em primeira instância acima tratada, o TJ-SP negou provimento ao recurso impetrado pelo espólio invocando a propriedade do imóvel por parte da massa falida da Selecta. A Defensoria Pública Estadual, via Agravo de Instrumento, invoca a importância do MST (Movimento dos Sem Teto) como norteadores de organização social dos necessitados, bem como a função Estatal prevista no artigo 5.º da Constituição de amparo e defesa destes, bem como seu interesse é social, não jurídico. Além disso, argumenta que a Defensoria Pública jamais deveria ser terceiro interessado no processo. Pedidos indeferidos.

A Associação Democrática por Moradia e Direitos Sociais – ADMDS, em conjunto com a CONLUTAS – Central Sindical e Popular, impetrou junto ao CNJ – Conselho Nacional de Justiça, Reclamação Disciplinar contra a juíza de primeira instância, contra o Presidente do TJ-SP e desembargadores do caso. OS argumentos de tal petição foram:

- ocupação de área abandonada por famílias organizadas, o que denota a força dos desamparados em relações comunitárias a lutarem pelo direito de moradia;

- tumulto processual por trás do massacre promovido pela Polícia Militar Estadual a mando do presidente do TJ-SP, com mortos e feridos;

- violação dos direitos humanos;

- violações processuais da juíza de primeira instância e imparcialidade na condução do processo;

- a conduta ética do presidente do Tribunal, Ivan Sartori;

- incompatibilidade de despejos forçados com o Pacto Americano de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

- necessidade de diálogo institucional diante do tratamento do Judiciário de casos de conflitos fundiários;

- pedido para transferir o caso para a PGR.


Relação do caso em tela com o texto de Sara Araújo: 

No texto “O primado do Direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone”, Sara Araújo discorre a respeito do modelo de estudo e de prática do Direito Europeu como excludente e colonialista, promotor de exclusões abissais tanto do ponto de vista jurídico como epistemológico, desprezando a pluralidade do Direito e opressor da ampliação de sua aplicabilidade como fator indutor de justiça social. Discorre também que o cosmopolitismo da legalidade do direito é subalterno ao modelo capitalista excludente, sob as óticas econômicas, sociais e do usufruto de direitos fundamentais.

O caso do Pinheirinho ou, de forma mais específica, o senso de “urgência” da juíza de primeira instância, o massacre promovido pelo TJ-SP, as discussões éticas e processuais promovidas pelo Judiciário paulista, o desprezo pela função social da propriedade e pelos trâmites em instância federal das tratativas de tornar o terreno útil para desapropriação revelam a exclusão social proposta pela autora Sara Araújo. Vejamos algumas ideias do texto com o caso do Pinheirinho:

- O direito moderno é uma invenção ocidental adicionada ao mito organizado da noção de progresso. O século XIX, especialmente, nas suas últimas três décadas, foi marcado pelo talho dos territórios africano e asiáticos pelos países europeus, com o intuito de explorar seus recursos humanos e naturais, impondo visões preconceituosas e supremacistas, como o darwinismo social, por exemplo. Ou seja, impunha-se a tarefa civilizatória europeia a tais territórios. Na petição apresentada pela Associação Democrática por Moradia e Direitos Sociais – ADMDS ao CNJ, faz-se menção a “fúria que permeou as condutas dos atores das forças de repressão no Massacre do Pinheirinho, todos capitaneados pelo presidente do TJSP, é diametralmente oposta ao conteúdo que tais regras constitucionais de caráter 

     jurisdicional encerram – que “o Estado democrático ocidental continua a manter-se fiel a um nível civilizatório já alcançado. Percebe-se que o ocidental, conforme o Presidente do TJ-SP, é civilizatório, não importa se para alcançar tal “nível de civilização” sejam ceifadas vidas e cometam-se desvios éticos e processuais, em favor.... pasmem, de uma massa falida.

- Necessidade de reconhecimento do pluralismo jurídico como exercício jurídico epistêmico: tal conceito não envolveria, necessariamente o desprezo ao modelo colonial, mas sim deveria agregar a ampliação do cânone jurídico e expansão do primado do direito, especialmente pela ponderação da sociologia das ausências dos direitos dos oprimidos e pela necessidade do cosmopolitismo da legalidade. Neste ponto, o caso do Pinheirinho é um show de horrores. Juízes e Desembargadores desprezaram a importância da Defensoria Pública como parte do processo, desviaram a interpretação da função social constitucional da propriedade, desprezaram a situação de desdém produtivo sob a ótica econômica promovido pelos antigos proprietários e destacaram a importância do Judiciário como defensor do direito de propriedade, no caso de um terreno sem função econômica alguma para a empresa (processo de falência já em andamento).

 - Expansão do Primado do Direito e a colonialidade jurídica: evidenciados com cores fortes no caso do Pinheirinho. Nada mais colonialista que desprezar os oprimidos e desamparados de forma brutal e violenta em nome dos detentores de patrimônio. Para tanto, a juíza de primeira instância lança mão da neutralidade vernacular da técnica do direito de forma elegante, ao realçar a estrutura do Judiciário como argumento para o direito de propriedade ter mesmo “degrau hierárquico constitucional” que o direito de moradia. Nada mais subalterno à força do capital quando se tem famílias sem teto envolvidas no caso.

- Direito Ocidental como homogeneizador do mundo e Estado de Direito com conotação positiva associada à democracia: - como caracterizar de forma igual o Estado de Direito em um país com quase quatro séculos de escravidão e suas marcas, até então, indeléveis nas oportunidades de trabalho, emprego, renda e moradia para negros e pobres?

 - Ideologia das Instituições supera a ideologia dos indivíduos em ambiente capitalista colonialista europeu, que impõe estruturas marginalizadoras: o TJ-SP demonstrou isso ao dar regime de urgência a uma reintegração de posse a um terreno habitado há sete ou oito anos antes do massacre. Vale dizer que, desde o dia 05 de outubro de 1988, o Estado de São Paulo foi um dos últimos a efetivar e estrutura sua Defensoria Pública.

- Monoculturas do direito a serviço do rigor da ciência e da técnica: Sara Araújo trata de monoculturas como a do saber e da ciência, a da produtividade capitalista, da naturalização das diferenças e da própria técnica jurídica. Tais monoculturas assentam o direito em falácias quase deterministas, que expõem a colonialidade do pensamento moderno. A tentativa de interpretar a postura dos juízes de primeira instância e do tribunal à luz do texto de Sara Araújo podem desembocar em uma infame canastrice do Judiciário: a monocultura da produtividade capitalista, neste caso, nem era possível de ser argumentada – era um terreno de uma massa falida, de aquisição suspeita, e a monocultura da naturalização das diferenças pode distribuir a população por categorias. Nesse caso, a categoria dos “invasores”. Por fim, a monocultura jurídica despreza direitos locais e dos desamparados. 

- Imposição à força do Estado de Direito, desprezando pluralismo jurídico e eventuais possibilidades de justiça informal: A petição destinada ao CNJ e o repúdio da urbanista Raquel Rolnik são exemplos da necessidade de o Judiciário rever suas condutas em casos de conflito de posse de terras. De novo: no Pinheirinho, Estado de direito para quem?

-  Sistemas de justiça nem sempre resolvem quando a instrumentalização do Direito segue sua marcha excludente: resolver no sentido de se buscar a justiça social. O desapego ao pluralismo jurídico exigiria a atenção a todos os atores envolvidos. A indecência do caso em questão aloja-se no desprezo às tratativas da União no caso de cambiar a área em interesse de desapropriação.

- Justiça formal como violadora de direitos humanos e capaz de reforçar a discriminação: de forma irônica, o TJ-SP fez seu trabalho excludente de forma violenta. Clamou em senso de urgência a Polícia Militar Estadual e a prefeitura de São José dos Campos, de forma submissa, recrutou fileiras de sua Guarda Civil. 

- desprezo da necessidade de reforma jurídica diante da realidade óbvia do pluralismo jurídico: aqui o TJ, de forma irônica, “caprichou” – desconsiderou a história da ocupação do terreno, “desmemorizando” o processo; desprezou possíveis práticas de direito não estatal para resolução de conflitos, desprezando o papel da Defensoria Pública; desinteressou-se em contrariar interesses econômicos. 

- desprezo à ecologia dos direitos e, talvez, temor ao fato de que o pluralismo jurídico contribui a descolonização de ecologias jurídicas: TJ promoveu silenciamento diante do sofrimento humano, tratando os moradores como invisíveis, até “a hora de baixar o pau” no cumprimento da reintegração da posse. 

- promoção do cosmopolitismo subalterno diante do detentor do capital: TJ-SP desdenhou das formas de organização social dos moradores do terreno.

- utilização do Estado de Direito como modelo exportável que assegura hegemonia capitalista, promovendo silenciamento dos sujeitos: o TJ o fez ao convocar força repressora para expulsar do local os moradores. 

Por fim, façamos conexão do texto da Sara Araújo ao texto do Michael McCann. Este propõe que sociedades complexas têm apresentado fortalecimento político de Tribunais pela necessidade de manutenção dos direitos preconizados pela constituição federal. No caso do Pinheirinho, houve preocupação do TJ em tratar o caso com base no artigo 5.º da CF ou apenas uma subalterna atuação diante do capital?


CURSO: DIREITO – Período Noturno

Disciplina: Sociologia do Direito

Ricardo Camacho Bologna Garcia – Número UNESP: 211221511

Nota da Monitoria: texto enviado por e-mail no dia 5 de dez. de 2021, 11h14 



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