quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Em busca de uma visibilidade da realidade do Sul

As diferenças e as separações feitas entre Norte e Sul não são recentes e muito menos se reduzem a questões de localização geográfica. Desde o período colonial, das grandes navegações e da expansão do poderio europeu pelo mundo, assumiu-se uma hostilidade contra aqueles tidos como os “outros”, passando a os tratar como “um vazio imaginado, sem nada a ensinar e que deve aprender da superioridade ocidental” (SANTOS, 2014a apud ARAÚJO, 2016).  Essa visão se expandiu ainda mais durante o período neocolonial, através de teorias como evolucionismo social, que  buscavam - por meio de uma suposta ciência sem grandes fundamentos - justificar esses pensamentos. 

Décadas após as relações políticas mudarem “com o fim político dos impérios coloniais, as narrativas hegemônicas, sobre as quais assentou a alegada superioridade dos países do Norte, não foram decisivamente postas em causa e são constitutivas do projeto da modernidade.” (ARAÚJO, p. 94, 2016). O direito moderno se baseia nestas mesmas perspectivas dominantes, contribuindo e servindo de instrumento para a reprodução do colonialismo e do capitalismo. A linha que separa o Sul e o Norte, também acaba se estendendo ao âmbito jurídico, no qual de um lado se  encontram vários universos jurídicos que são desperdiçados, considerados inferiores, primitivos e não existentes por conta da “não contemporaneidade do contemporâneo” (ARAÚJO, p. 97, 2016). Enquanto do outro lado, se encontra o pensamento hegemônico, supostamente superior. 

Esse domínio impõe um direito universal, sem levar em conta as especificidades de cada localidade, pois ao tornar “invisível a realidade do lado lá não compromete a universalidade do que se propõe deste lado.” (ARAÚJO, p. 96, 2016), assumindo assim o conceito de uma razão metonímica, na qual se assume a parte como um todo. Perante a esse pensamento hegemônico, o direito e as normas são impostas pelo Estado ou também de acordo com ideiais internacionais, sendo esses os responsáveis por ditar o que é legal ou ilegal.

    “Legal e ilegal perante a lei são as únicas formas relevantes de existência e, nesse sentido, a distinção entre ambos é uma distinção universal.”  (ARAÚJO, p. 96, 2016).  Com esse pensamento, busca-se a legalidade e a regulamentação a qualquer custo e em todos os aspectos da vida dos indivíduos. A exemplo disso, é possível citar a Ação de Reintegração de Posse do bairro Pinheirinho, um terreno de 1,3 milhão de metros quadrados, que era ocupado há 8 anos por aproximadamente 6 mil pessoas  em São José dos Campos - SP. Esse processo foi ajuizado pela empresa Selecta e, em uma decisão cheia de contradições, foi deferido pela juíza Márcia Loureiro. Assim, em uma ação de extrema brutalidade, inúmeras famílias foram retiradas à força de suas casas por policiais.     

À vista do exposto, nota-se que essa procura por uma legalidade sem se importar com as consequências, valoriza mais o mercado do que as pessoas e é capaz de  deixar indivíduos desabrigados apenas para obter o lucro com a especulação imobiliária, removendo tudo o que está no caminho. Nesse sentido, como a autora Sara Araújo (2016) expõe, "atropela ordenamentos jurídicos que regem outras culturas e outras organizações políticas e cria a sociedade civil incivil.” (p.111), ou seja, uma sociedade que deixa grande parte dos cidadãos de fora do contrato social, marginalizados e invisibilizados. 

    É este o cânone hegemônico a ser desafiado. O domínio que menospreza as ciências e os pensamentos epistêmicos do Sul e que os trata como inferiores e não dignos de serem ouvidos. É diante dessa hegemonia que o Norte consegue obter decisões que permitam à exploração e a realização dos seus interesses nestes outros países. Por isso, em resposta a essa opressão, a autora Sara Araújo expõe a necessidade de um pluralismo jurídico e também de uma ecologia de direitos e justiça. Nesse modelo, seria necessário tratar as diferenças entre os ordenamentos de forma horizontal e não vertical, como vem sendo tratada. Este processo seria feito através da criação de “pontes de diálogo que permitam promover aprendizagens jurídicas recíprocas entre Norte e Sul” (ARAÚJO, p. 111, 2016).     

Conclui-se por fim que, a hegemonia do Norte em relação ao Sul ainda é marcante e perceptível, principalmente através do direito. Assim, faz-se necessário a ultrapassagem dessa linha que divide Norte e Sul, uma vez que enquanto o cânone universalista se manter, inúmeras realidades serão ignoradas e produções de conhecimento preciosas serão perdidas. É por essa razão que o pluralismo jurídico e a ecologia de direitos e justiça são elementos importantes nessa resistência à dominação. Portanto, não é preciso tratar um direito como se fosse melhor do que o outro, mas sim assumir-se uma visão horizontal, em que todos possam ser vistos como equivalentes. 




Ana Beatriz da Silva - 1º Ano de Direito - Diurno




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 


SANTOS, B. de S. Epistemologies of the South. Boulder: Paradigm, 2014a.


ARAÚJO, Sara. O primado do direito e as exclusões abissais: reconstruir velhos conceitos, desafiar o cânone. Sociologias. Porto Alegre, ano 18, n.o 43, set/dez 2016. 


 

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