domingo, 5 de dezembro de 2021

“do outro lado” falamos em liberdade de expressão, subjetividade e pluralidade de manifestações


A partir do século XIX, a ciência médica passou a se aproximar do tema da homossexualidade desenvolvendo inúmeras teses, ainda muito influenciadas pelo preconceito, acerca da natureza dessas relações. Todavia, a literatura demonstra que os indivíduos possuem e expressam orientações sexuais distintas muito antes da medicina preocupar-se em estudá-las. Na Antiguidade Clássica, pautas como o homoerotismo resultam em uma análise muito mais emblemática, pois, naquela época, expressões de sexualidade que são vistas hoje como desvios da “ordem natural”, eram aceitas e tidas como forma particular de exaltar beleza e juventude. Contudo, com a Idade Média, o estabelecimento do pecado cristão conferiu ao homoerotismo um caráter demoníaco, de subversão e, portanto, proibido. A partir daí discussões que tivessem identidade de gênero, sexualidade e orientação sexual como pautas centrais foram cada vez mais sufocadas e silenciadas pelo o que Sara Araújo, dialogando com as ideias de Boaventura de Sousa Santos, irá chamar de “epistemologias do Norte”.

Segundo a autora, com base na tese do professor português, o Norte representa perspectivas, conceitos, normas e princípios que são hegemônicos, enquanto o Sul é composto por todas as outras ideias consideradas atrasadas e invisíveis, caracterizando uma divisão que ultrapassa limites geográficos. Tudo o que é movimentado pelo lado “assimétrico” recai no esquecimento da universalidade, uma vez que uma monocultura do saber transforma o pensamento científico e a cultura do Norte em preceitos únicos e superiores, enquanto uma monocultura do global generaliza tudo o que é singular. A desvalorização daquilo que é produzido pelo não-hegemônico resulta no imaginário popular a ideia de improdutividade, o que, por conseguinte, reverbera a noção de que esse grupo subalternizado é de fato selvagem, atrasado e primitivo e deve, por isso, ser engolido pelo padrão civilizacional da modernidade.

Tal condição pode ser observada na decisão tomada pelo TJRJ de suspender a liminar concedida pelo Desembargador Heleno Ribeiro Pereira Nunes, da 5ª Câmara Cível. No caso que envolvia a apreensão de obras de homoerotismo na Bienal do Livro da cidade do Rio de Janeiro, o desembargador concedeu a liminar para determinar “ (i) a abstenção de apreensão das obras “em função do seu conteúdo, notadamente aquelas que tratam do homotransexualismo” e (ii) a abstenção da cassação da licença para a bienal, embasando-se na preservação da liberdade de expressão”. No entanto, o Tribunal de Justiça do estado, em uma evidente lógica evolucionista de atropelar as diferenças, suspendeu a referida liminar, embasando-se, essencialmente, no Estatuto da Criança e do Adolescente. A postura adotada pelo tribunal ilustra a urgência não em preservar as pautas descritas nos artigos do ECA, mas sim em manter as formas hegemônicas de pensamento, haja vista que uma produção literária que aborda o mesmo conteúdo, mas aos moldes da heteronormatividade não resulta em tamanha censura e reprovação.

Entretanto, o julgado conta ainda com a suspensão dessa liminar apresentada pela Procuradoria-Geral da República em face de decisão do Presidente do TJRJ, dialogando mais uma vez com as ideias de Sara Araújo. A PGR defende “a necessidade de suspensão da referida decisão, uma vez que estaria por ferir “frontalmente a igualdade, a liberdade de expressão artística e o direito à informação”, afirmando que “o ato da Prefeitura do Município do Rio de Janeiro discrimina frontalmente pessoas por sua orientação sexual e identidade de gênero, ao determinar o uso de embalagem lacrada somente para “obras que tratem do tema do homotransexualismo” exemplificando como a tentativa de manutenção da colonialidade da ciência e da razão pode ser superada quando a ecologia de direitos é posta em prática, valorizando a liberdade de pensamento e expressão, celebrando a pluralidade de ideias e substituindo o universalismo abstrato do direito moderno.

Giovanna Cardozo Silva - Turma XXXVIII - matutino

 

 

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