domingo, 5 de dezembro de 2021

Boaventura de Sousa Santos & Caso Mariana Ferrer

Boaventura de Sousa Santos é Doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale e também é Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, além de, ao longo de sua trajetória, ter passado por diversos cargos em instituições renomadas, ter sido autor de diversas obras e ter recebido diversos prêmios – no Brasil, por exemplo, é Doutor Honoris Causa em 11 Universidades.

Em seu livro “Para uma revolução democrática da justiça”, Santos fala justamente na possibilidade de se haver um Direito emancipatório, possibilitado por uma revolução democrática da justiça, revolução essa que se “assenta na valorização da diversidade jurídica do mundo como mola propulsora do pensamento jurídico crítico”.  Ele defende que essa revolução do direito e da justiça deve estar inserida em outra ainda mais ampla, que inclua a democratização do Estado e da sociedade. E daí em diante, ele centra-se no sistema jurídico e judicial estatal.

É preciso que se destaque, como o autor faz, o protagonismo dos tribunais, que é um fato que entra em destaque principalmente a partir do final da década de 1980, em diversos pontos do globo: América Latina, Europa, Ásia e África. Nas sociedades atuais, há o que Santos descreve como consciência de direitos – tais sociedades são imbuídas de extrema desigualdade, mas isso não significada que aqueles afetados por essa desigualdade ficam inertes a ela. Tanto individualmente, como coletivamente, esses indivíduos buscam seus direitos.

E é justamente o desmantelamento do Estado social, que compreende aspectos como o direito laboral, previdência social, saúde, educação etc., como o autor explica, o motivo para a existência de muitos litígios que chegam ao tribunal. Novamente, quando as pessoas tornam-se conscientes de seus direitos, lutam para obtê-los efetivamente. Portanto, hiperjudicialização é igual a hiperconscientização de direitos.  

Isto tudo posto é importante para que se chegue ao ponto pretendido por esse texto, o de falar sobre a profunda transformação que deve ocorrer no sistema judiciário, de acordo com Boaventura de Sousa Santos. Esse sistema carece de ser transformado de modo que a procura de direitos feita pelos cidadãos de classes populares seja de fato efetivada. Mais do que buscar acesso a uma justiça já existente, é preciso buscar mudar a justiça a que se tem acesso. E daí, ele cita diversos vetores dessa transformação que precisa ocorrer, dentre eles: novos mecanismos e novos protagonismos no acesso ao direito e à justiça; e a revolução na formação profissional, desde as faculdades de direito até a formação permanente.

Sobre os novos mecanismos e novos protagonismos no acesso ao direito e à justiça, Santos fala sobre os importantes papéis desempenhados pelas defensorias públicas, pelas promotorias legais populares, pelas assessorias jurídicas e pela advocacia popular. Contudo, pensando na violência de gênero, em que, dependendo da localidade, existem, por exemplo, defensorias especializadas na temática, que podem dar respostas mais qualificadas aos devidos casos, ainda é preciso que se trabalhe mais arduamente e efetivamente para que se garanta o pleno acesso das mulheres ao direito e à justiça. É sabido que existe uma precariedade institucional de defesa da mulher no país e essas próprias instituições especializadas não ficam imunes a isso. São diversos os casos de mulheres que, conscientes de seus direitos, ao denunciar um agressor (o que não é uma tarefa fácil, diga-se de passagem), por exemplo, encontram-se desamparadas quando em órgãos responsáveis, seja por falta de profissionais qualificados e empáticos – ainda hoje, de acordo com a pesquisa Violência Contra a Mulher e Acesso à Justiça, realizada pela CEPIA, “[...] o atendimento ainda se pauta por uma visão preconceituosa e discriminatória contra as mulheres que são descritas como as principais responsáveis pela demora na conclusão dos inquéritos policiais e na deficiência das provas que são produzidas.” - seja por falta de infraestrutura.

Ademais, há de se falar do próprio despreparo do judiciário e de seus operadores em lidar com questões de violência de gênero. O Caso Mariana Ferrer, que ganhou amplitude nacional, é um exemplo de tal despreparo desses operadores. Em julho de 2019, o Ministério Público de Santa Catarina realizou denúncia contra o empresário André de Camargo Aranha por estupro de vulnerável. O empresário acabou absolvido, mas na época, já em 2020, veio à tona a audiência de julgamento do caso. O advogado de defesa do acusado, Claúdio Gastão da Rosa Filho, valendo-se de uma violência psicológica contra Mariana, mostrou fotos íntimas de Ferrer, fazendo várias menções a sua vida pessoal e chegando a dizer, inclusive, que: “Uma filha do teu nível, graças a Deus. E também peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher que nem você. Só falta uma auréola na cabeça. Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso. E essa lágrima de crocodilo”.  

Esse é um tipo de caso em que se evidencia a necessidade de uma revolução na formação profissional, desde as faculdades de direito até a formação permanente, como Boaventura de Sousa Santos propõe. Para ele:

“Estou convencido de que, para a concretização do projeto político-jurídico de refundação democrática da justiça, é necessário mudar completamente o ensino e a formação de todos os operadores de direito: funcionários, membros do ministério público, defensores públicos, juízes e advogados. É necessária uma revolução. ”

E prossegue:

“Temos que formar os profissionais para a complexidade, para os novos desafios, para os novos riscos. As novas gerações vão viver numa sociedade que, como eu dizia, combina uma aspiração democrática muito forte com uma consciência da desigualdade social bastante sólida. E, mais do que isso, uma consciência complexa, feita da dupla aspiração de igualdade e de respeito da diferença. ”

Dessa forma, a esperança para que audiências como essa não sejam uma constante reside exatamente em um ensino jurídico mais politizado e crítico, que não seja alheio aos seus arredores e que também não seja refém do mercado e da totalidade das normas técnico-burocratas. Como Santos diz:

“Penso que a educação jurídica deve ser uma educação intercultural, interdisciplinar e profundamente imbuída da ideia de responsabilidade cidadã, pois só assim poderá combater os três pilares da cultura normativista técnico-burocrática a que fiz referência: a ideia da autonomia do direito, do excepcionalismo do direito e da concepção tecnoburocrática dos processos.”.

Referências:

https://assets-compromissoeatitude-ipg.sfo2.digitaloceanspaces.com/2013/11/Pesquisa-Violencia-Contra-a-Mulher-e-Acesso-a-Justica_SumarioExecutivo.pdf

https://noticias.r7.com/cidades/com-ofensas-e-humilhacoes-justica-reforca-violencia-contra-a-mulher-17052021

https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/09/28/caso-mariana-ferrer-cnj-abre-procedimento-para-analisar-conduta-de-juiz-de-sc.ghtml

https://pt.wikipedia.org/wiki/Caso_Mariana_Ferrer


Laura Ruas, Direito Matutino

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