segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

As deficiências de uma aplicação puramente técnica do Direito

 Ao propor uma Revolução Democrática do Direito, Boaventura de Sousa Santos trata sobre questões problemáticas do universo jurídico. Entre elas, a visão e ação puramente técnico-burocrática que a maioria dos operadores têm frente ao Direito, o que torna o processo jurídico menos justo e eficiente, uma vez que não conseguem analisar profundamente todas as perspectivas que envolvem os litígios a que são apresentados. O Direito, porém, tem a função de resolver os conflitos dentro de uma sociedade, buscando a melhor solução para ambos os lados. Deve servir para aliviar sofrimentos, não os causar ou intensificar. Portanto, jamais pode se ausentar de um estudo profundo sobre a realidade social de cada caso e cada parte envolvida nele, para resguardar-se a uma posição de ciência exata e puramente técnica que decreta automaticamente a norma prescrita sem nenhuma adaptação específica para cada situação. Esta conduta fere os princípios e as intenções do exercício do Direito. Mesmo assim, é comum que aplicadores, ajam de tal maneira, como veremos ao analisar o caso da reintegração de posse da fazenda Pinheirinho em São José dos Campos.


   A magistrada do caso Pinheirinho, Márcia Faria Mathey Loureiro, defende que deve fazer uma execução puramente técnica da lei e que não cabe ao judiciário atuar sobre as questões sociais e a luta pelo direito à moradia, a ele não cabe agir por tais causas, nem ao menos com um olhar solidário por elas. Para ela, ele deve apenas assegurar o direito da propriedade.Entre as formas de manifestação dessa cultura jurídica, Santos cita a desresponsabilização perante os maus resultados do julgamento. Os juízes impõem a norma da forma desejada e afastam-se, já que não viverão as consequências do cumprimento da ordem e é quase nula a possibilidade de sofrerem alguma sanção por uma má aplicação. Ou seja, não importa se milhares de famílias ficarão desabrigadas, morando na rua, enquanto a juíza e o proprietário milionário do terreno continuarão em suas casas e vidas confortáveis. Para a magistrada, isso não é questão a ser tratada. A única coisa que ela deve fazer é proferir a sentença sem analisar a fundo a realidade vivida e o grande impacto que sua decisão terá na vida de pessoas em situação de vulnerabilidade.


    Porém, em realidade, a aplicação nunca é desvinculada de uma ideologia. Quando os operadores do direito desejam se afastar das demandas e movimentações sociais, acabam replicando o pensamento da classe dominante, o senso comum influenciado pela mídia que esta controla. Nesse caso, a juíza agiu sob a influência da ideia de que os trabalhadores do assentamento Pinheirinho - assim como todos os integrantes dos movimentos que lutam pelo direito básico da posse da terra, como o MST - são invasores, insuflados por interesses externos, que roubam propriedades que foram, de forma árdua e honesta, compradas pelos donos. Quando, na verdade só estão ali pois a posse original do terreno foi adquirida de forma ilegal e porque não havia mais nenhuma opção para conseguirem um lugar para se abrigarem que não fosse por meio da ocupação daquela área abandonada. Ao agir sob estas concepções, a juíza trabalha para favorecer membros da burguesia, mesmo que estes também estejam em situação de ilicitude, e criminalizar a luta de trabalhadores por dignidade.


  Em contrapartida a este comportamento de muitos operadores do direitos, que se torna tão prejudicial para o exercício democrático, Boaventura de Sousa Santos exemplifica a ação das defensorias públicas. Estas, por estarem vinculados à causa para além de interesses puramente econômicos, conseguem operacionalizar além desta lógica. Podem estar em contato real com as bases sociais, escutando, incorporando e lutando pelas demandas das populações marginalizadas; sendo uma das poucas oportunidades de defesa dessa classe frente aos abusos sociais e estatais. Assim, as defensorias públicas têm a capacidade de atuar na sociologia das ausências e enxergar além, identificando novos conflitos e maneiras para lidar com eles, de forma que o Direito tradicional e enrijecido em tribunais e escritórios particulares ainda não consegue. Foi o que aconteceu no processo de Pinheirinho. Quem fez uma excelentíssima defesa dos moradores do bairro, os orientou sobre seus direitos e sobre os abusos que sofriam, levou as causas de pessoas cotidianamente invisibilizadas e silenciadas até as instâncias federais e quem, mesmo depois da reintegração de posse, continuou lutando pelas famílias do assentamento e denunciando as atrocidades que foram cometidas contra elas, foi inteiramente a defensoria pública. É essa sensibilização que ocorre quando se trabalha diretamente com os movimentos sociais e as classes oprimidas que Sousa Santos defende para melhorar a qualidade da justiça, tornando-a mais democrática - e justa. Por isso, para ele, deve haver uma reformulação do ensino jurídico que faça com que estudantes e formados estejam continuamente em contato com as demandas da população e que vejam o Direito e sua execução como um campo essencialmente de luta pelo atendimento delas, não apenas como um espaço elitizado - pensamento que muito ilude e atrai novos operadores. 

Sofia Moreira Pinatti


Nota da Monitoria: texto enviado por e-mail no 06 dez. 2021, 12h38

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