domingo, 7 de novembro de 2021

Judicialização Social

        É ponto comum nas discussões sociais e políticas modernas o papel do judiciário em seus andamentos. Mas nem sempre foi assim. Desde o redescobrimento do direito romano na baixa idade média, salvo aos países que não o adotaram, a lei e sua aplicação eram relativamente fixas à lei positivada. Tal fenômeno foi ainda mais consolidado na história recente do Brasil com a adoção por grande parte das elites intelectuais brasileiras do positivismo. Antoine Garapon disserta sobre o tema em sua obra "O juiz e a democracia", na qual analisa à luz de Tocqueville o papel do judiciário numa democracia e suas mudanças no último século. 

        Os julgados que corroboram perfeitamente a coautoria do direito pelos magistrados abordada por Garapon em sua obra são a ADPF n. 779/DF e o RE Nº 1.671.344 - RJ. A primeira sendo um julgado do STF invalidando a "legítima defesa da honra" e o segundo um julgamento de um recurso ao STJ por parte dos familiares de um psicólogo morto que pediam indenização do autor. Neste caso, o autor do crime era o paciente do psicólogo que supostamente descobriu que o profissional usou das informações adquiridas durante as sessões com o cliente para seduzir sua esposa e ter um caso com ela. Ao descobrir, o paciente foi à próxima consulta armado e executou o psicólogo.  

        A terceira turma do STJ em votação unânime aumentou a indenização que fora imposta pelas cortes inferiores de 30 para 300 mil reais para a família do falecido com direito também a palavras de ordem e condenações morais a atitude do autor do crime. Afirmando o relator: 

                “Inaceitável admitir o revanchismo como forma de defesa da honra, a fim de justificar a exclusão ou a redução do valor indenizatório, notadamente em uma sociedade beligerante e que vivencia um cotidiano de ira, sob pena de banalização e perpetuação da cultura de violência” 

        Em resposta aos argumentos da defesa, onde argumentava que o profissional assassinado também possuía parcela de culpa por ter incitado o crime com suas ações e, portanto, o valor da indenização deveria refletir esta culpa parcial da vítima, responde o relator: 

                    “retórica odiosa, desumana e cruel, com a repulsiva tentativa de se imputar à vítima a causa de sua própria morte” 

        Também acerca dos efeitos posteriores do julgado concluiu o ministro:  

                    “A adoção de pensamento diverso contribui para a banalização e perpetuação de violência (principalmente contra as mulheres), cabendo ao Poder Judiciário atuar como contrafator a essa cultura antiquada, impondo a vigência da lei a fim de se evitar a perpetração de comportamentos bárbaros” 

        Acerca da posição tutelar que o Judiciário ocupa na atualidade, uma análise desapaixonada do julgado nos revela que não só está sendo julgado o caso em questão, mas também há uma tentativa de criação de moralidade ao distinguir o que é bárbaro, cultura da violência, criador de uma sociedade beligerante e revanchista do que é a Lei, a Ordem e o poder semi sacerdotal por trás de ambas; o Judiciário. 

        Tal papel que aspira o relator também se mostra pelo tema em questão, aprovado ou mais brandamente compreendido pelo código moral antecedente. Tentando então com sua condenação moral da conduta criminosa exercer a função de oráculo da conduta correta e, com seu malhete, carrasco da conduta reprovável. Ainda que sejam louváveis as posições dos magistrados, há de se questionar o contexto pelo qual elas são impostas a sociedade visto que, exatamente pelo seu caráter pessoal, podem ser admiráveis ou também repulsivas. 

        Dentre os fatores possíveis pelos quais estes novos papéis foram entregues ao judiciário, mas não só a ele, pode ser citada o grande abandono por parte do mundo ocidental e islâmico, até a ascendência do Wahabismo, do papel social das religiões no desenvolvimento moral das pessoas. Muito é dito que "O jornalista é o novo sacerdote". Mas na realidade eles não são os únicos que tomaram parte dessa função. A antiga função de "dizer o que é verdade" ficou a cargo de muitas das profissões que sempre gozaram de certo prestígio em seus respectivos campos de estudo; médicos, professores, juízes, psicólogos etc... E claro, esta orfandade de valores necessariamente desaguaria no direito suas consequências mais visíveis, visto que é a última instância social de resolução de conflitos, ganhando com isso, também uma função tutelar da sociedade. 

 

Rafael C M Martinelli 2o Sem/ Direito Noturno 

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