sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Bienal de 2019 e o paradoxo do jurista na democracia

    Devido ao fato de expor obras contendo conteúdos homotransexualistas, a Bienal do Livro do Rio de Janeiro de 2019, foi alvo de uma tentativa de censura por meio do Mandado de Segurança número 0056881-31.2019.8.19.0000 do desembargador Heleno Ribeira Pereira Nunes, no qual previa que as obras que tratassem de tal tema e não estivessem lacradas e com advertências em relação ao seu conteúdo seriam recolhidas. Mesmo que tenha sido suspensa através de uma medida cautelar, o caso possui significância por representar a influência que decisões judiciais têm sobre o que é socialmente aceito, assim como também demonstra a crescente conscientização do indivíduo a respeito da legislação.

    A justificativa utilizada pelo desembargador supracitado para a tentativa de censura é que o conteúdo em questão seria prejudicial ao público jovem e infantil, sendo tal uma argumentação positivista da defesa dos vagamente definidos "bons costumes da família tradicional brasileira". Entretanto, mesmo que tenha sido barrada por ser um claro ataque ao direito à liberdade de expressão, a decisão de Pereira Nunes ainda cria entraves para a luta a favor da homotransexualidade, visto pode gerar pretexto para indivíduos intolerantes ou que defendem fanaticamente os "bons costumes", usando o posicionamento de um jurista como uma forma de permissão e precedente para perpetuar atos de homofobia ou transfobia. Esse comportamento também é previsto na obra do magistrado Antoine Garapon "O Juiz e a Democracia", na qual o pensador reflete que tal é resultado, decorrente do advento democrático, da diminuição das autoridades tradicionais, como a dos chefes de famílias, e da maior complexidade dos problemas jurídicos, tendo como consequência no caso brasileiro a transferência da figura de autoridade do patriarca para o juiz, com qualquer tentativa de legitimar um discurso sendo agora através da figura desse ao invés daquele. Paradoxalmente, no entanto, devido ao cerne da democracia ser a igualdade entre os indivíduos, a influência da figura do jurista também é enfraquecida, pois como todos são iguais, exercer o ofício do direito não torna alguém superior ao resto da população. Desse modo, o jurista não deveria ser tratado como uma entidade capaz de sozinha ditar o que é social e moralmente aceito, como no caso do conteúdo homotransafetivo da Bienal de 2019.

    Tendo em vista a igualdade entre os indivíduos prevista na democracia, não há verdadeiramente desvios comportamentais do padrão, pois conforme o entendimento do aludido pensador a respeito do regime democrático, não é possível deduzir os padrões morais a partir de um comportamento padronizado. Portanto, ao proclamar que o comportamento homotransafetivo é danoso à juventude, está ocorrendo a diminuição daqueles que exibem tal conduta e favorecendo a heteronormatividade, resultando em uma quebra do ideal democrático, pois o mesmo prevê que todos são iguais, independente de suas preferências amorosas. Por conseguinte, mesmo que a decisão do desembargador possa acarretar empecilhos para o movimentos como o LGBTQIA+, ela também demonstra a resistência contra semelhantes atos que violem direitos, visto que a decisão de Pereira Nunes foi contestada e não simples e inquestionavelmente aceita. Mesmo que a tentativa de censura tenha sido suspensa por ação de outros juristas, ainda é importante ressaltar as manifestações, seja nas redes sociais ou por outros meios, contrárias ao discurso do desembargador, com diversas levantando o ponto de que seria uma infração do sobredito direito, evidenciando dessa forma que o acesso às leis não é mais monopólio de uma elite, mas sim algo que a população pode acessar e tomar conhecimento de seus direitos, tornando, conforme previsto na obra de Garapon, "todos em juristas", sendo cada um capaz de definir por contra própria se o teor das obras problematizadas por Pereira Nunes.

Rafael Nascimento Feitosa, Direito Diurno

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