domingo, 21 de novembro de 2021

A formação de uma consciência coletiva

A sociedade está em constante construção e desconstrução. Com todo esse processo, surgem debates necessários para esse aprimoramento social, como as questões de raça, sexualidade ou gênero, que por muitos anos foram negligenciadas e esquecidas. Atualmente, somos parte de uma geração que tende a entender melhor essas abordagens, um reflexo disso é o aumento de representatividade (ainda que escasso, porém maior do que antes) nas mídias e holofotes. E no direito, que é o foco dessa análise, podemos incluir a criminalização da homofobia e transfobia e as leis contra o feminicídio

Tornar a sociedade mais justa e inclusiva é uma luta diária e de muitos autores, reconhecer as dores e necessidades dos outros também é um desafio que requer muito do mundo. Isso porque é preciso desmistificar e transformar dogmas que por muito tempo perpetuaram em nossa sociedade e moldaram uma moral coletiva “ideal”. A mobilização social são essas transformações que modificam (mesmo que aos poucos) as estruturas modeladoras da sociedade.

Segundo Michael McCann, a mobilização social do direito é um processo que surge quando uma necessidade torna-se uma reivindicação de leis ou afirmação de direitos legais. Ou seja, quando há uma pressão tão forte por parte da população para transformar aquela realidade que o direito se modifica para inserir essas demandas. O surgimento de movimentos contra hegemônicos é fundamental para levantar debates acerca de novos elementos que possam moldar o direito. Em síntese, a moral coletiva e as mobilizações influenciam o direito e, partindo da premissa de que as mobilizações do direito detém diversos autores, o tribunal corrobora para essa formatação. 

Em um caso da 3° Vara Cível de Franca, uma ação foi movida contra um ex-aluno do curso de medicina da Universidade de Franca (Unifran)  por danos morais. Segundo consta no processo, o trote universitário dos calouros de 2019 ocorreu com expressões de cunho machista e humilhantes deferidas pelo acusado. Por esse motivo, alegou-se apologia ao estupro. Em um dos trechos do vídeo divulgado nas redes sociais, o juramento conduzido pelo acusado continha a seguinte frase: “[...] E prometo usar, manipular e abusar de todas as dentistas e facefianas que tiver oportunidade, sem nunca ligar no dia seguinte”. O processo foi encerrado como improcedente, ou seja, não se reconheceu apologia ao estupro no discurso do juramento. 

Entretanto, quando analisa-se esse caso sob a perspectiva do contexto de luta das mulheres (que cabe salientar, uma luta necessária e legítima), observa-se que a decisão corrobora para a banalização de discursos que reificam a mulher. Logo, o modo como foi encerrado o processo reafirma uma consciência moral machista que, por fim, reflete nas ações da sociedade como um todo. Entendendo o direito como um auxiliador da moral social comportamental, compreende-se o porquê da decisão judicial comentada ser tão absurda.

Cultura do estupro é um termo utilizado para exemplificar a normalização das violências sexuais presentes em nossa sociedade. O padrão dessa normalização está em diversos detalhes, tratar a falta de consentimento como um “charme feminino”, sexualização extrema de corpos, subentender atos de simpatia como convites para ato sexual, culpabilização de vítimas de abuso, entre outros muitos que poderiam ser aqui citados. Assim sendo, discursos com o mesmo teor do juramento proferido pelo acusado fazem parte de toda essa redoma cultural violenta. 

A luta das mulheres por um mundo minimamente seguro deve estar mobilizada dentro do direito. A lei Maria da Penha é um grande exemplo de como essa mobilização feminina dentro do campo jurídico fez a diferença para milhares de mulheres. É possível notar que a criminalização desse ato específico auxiliou no processo de criação de uma consciência moral coletiva que condena e, cada vez mais, “desnormaliza”  a violência contra a mulher.

Dessa forma, interpretar um discurso com as falas “prometo usar, manipular e abusar de todas as dentistas e facefianas que tiver oportunidade, sem nunca ligar no dia seguinte"; ou “me reservo totalmente a vontade dos meus veteranos e prometo sempre atender aos seus desejos sexuais. Compreendo que namoro não combina com faculdade e a partir de hoje sou solteira, estou à disposição dos meus veteranos” e “Juro solenemente nunca recusar a uma tentativa de coito de veterano (inaudível...) mesmo que ele cheire cecê vencido e elas, a perfume barato" como apologia ao estupro é uma forma de não normalizar atos de violência contra a mulher e mobilizar o direito para a proteção efetiva da população. 

Além disso, compreender que tais falas têm peso criminal dentro da sociedade cria, mesmo que de forma obrigatória, a tão desejada consciência coletiva de que corpos não são objetos e o respeito ao outro deve sempre prevalecer. A cultura do estupro começa nas “pequenas” ações do dia a dia, na brincadeira “inofensiva”. Se o papel do tribunal dentro da mobilização social é servir como um catalisador da mudança, reconhecer os problemas estruturais como problemas de fato, é também tornar a sociedade mais justa e segura.

Luísa Sasaki Chagas - Direito Matutino - Turma XXXVIII

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