domingo, 17 de outubro de 2021

 "Competência de estados e municípios para atuar no contexto da pandemia" e a análise de Bourdieu 

    No início do capítulo VIII da obra "O poder simbólico", Pierre Bourdieu aborda que a diferença entre a ciência do direito e a ciência jurídica é que a primeira é mais ampla, a ponto de tomar a segunda como objeto e associá-la ao campo social, não pela mistura entre essas áreas, mas através da compreensão profunda tanto da individualidade de cada uma quanto da autonomia do Direito diante dos demais setores sociais. Enquanto isso, a Medida Provisória 926, de 20 de março de 2020, no nono parágrafo do inciso VI do artigo 3° determina que "O Presidente da República disporá, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais a que se referem o §8°", o que levou o Partido Democrático Trabalhista (PDT) a declarar inconstitucionalidade da MP, que contraria o parágrafo único do inciso II do artigo 23 da Constituição Federal, que aponta a necessidade de cooperação entre a União, os estados e os municípios. Os textos, de matrizes e épocas distintas, aproximam-se na medida em que mencionam a não-maleabilização do Direito diante de situações sociais, ainda que, como no segundo caso, elas sejam impactantes e excepcionais. 

    Bourdieu segue sua análise a partir do fato de que atestar a existência de uma autonomia plena do Direito em relação à pressões da sociedade é ingênuo, cita os sindicatos americanos, que, outrora externos ao direito, foram formalizando-se ao longo do século XIX e comenta a questão trabalhista geral, ao mesmo tempo lógica e ética, que explicita a necessidade de a norma jurídica servir a um fim externo a ela e, por isso, a impossibilidade da autonomia supracitada. No que tange à essa precisão de servir para algo, vale citar que o PDT declarou, no mesmo documento em que atestou a incompatibilidade entre a CF e a MP, a necessidade de permitir que prefeitos e governadores interditem, se necessário, os serviços essenciais. Isso porque, mais do que a letra da lei, estava em pauta, no contexto, a urgência de proteger quantas pessoas fosse possível da contaminação pela COVID-19. 

    O filósofo ainda comenta que a hierarquização entre os envolvidos com o meio jurídico se dá na capacidade de cada um para ler, escrever e interpretar textos muito complexos, de modo que um jurista entende melhor que as demais pessoas o fato de o Direito possuir fundamento próprio. Isso relaciona-se ao voto do Ministro Marco Aurélio, que afirmou que, como os mencionados Artigo 3° da Medida Provisória 926 e o inciso II do Artigo 23 da Constituição Federal coexistirão, eles não anulam um ao outro, embora, para ele, valha explicitar essa não-anulação, por razão "simplesmente formal". Fica claro, nesse ponto, que o ministro enxerga a questão de acordo com a pirâmide de Kelsen, que coloca a Constituição Federal como soberana a qualquer Medida Provisória, e por isso o uso da expressão em aspas, enquanto os membros do Partido Democrático Trabalhista preocupam-se com as implicações práticas da edição da Medida o bastante para requerer amparo do Supremo Tribunal Federal contra ela. 

    Logo, é preciso ressaltar que os demais votantes, cada um de sua maneira, destacaram a importância da cooperação, e não da animosidade, entre as esferas de poder para que se vencesse o momento delicado, e pontuaram partes da lei externas à Medida em que essa agregação estava prevista e clara. Bourdieu não deixa de ressaltar, dentro da já dita linguagem jurídica, a tentativa de universalização e impessoalização da norma através do uso de verbos na terceira pessoa do singular, presente na linguagem dos votantes em construções como "o tribunal anulou" e "a Constituição prevê". E, apesar de essa exposição ter mostrado coerência entre os apontamentos do francês e o caso concreto brasileiro, nesse último ponto vale a ressalva de que a presença, ainda que escassa, da primeira pessoa do singular em algumas pares da peça pode indicar que um distanciamento entre ambos está começando a acontecer. 


MARIA PAULA A.GOLRKS - DIREITO MATUTINO - TURMA XXXVIII - 1° ANO - 2° SEMESTRE 

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