segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Análise

 Para Pierre Bourdieu, o campo jurídico é um espaço de lutas simbólicas com agentes de diferentes posições em conflito para o estabelecimento de quem ditará o Direito, quem terá suas vontades impostas como norma sobre o resto da sociedade. A análise da Liminar contra o fechamento de lotéricas e estabelecimentos bancários na cidade de Franca revela esse aspecto como seu ponto principal. Neste caso, há o confronto entre a decisão do prefeito, que defende o fechamento em virtude do alto número de contaminações e hospitalizações por entenderas lotéricas, como ambientes com alto risco de propagação do vírus, em virtude das frequentes aglomerações que ocorrem nestes locais. Sua posição representa a de profissionais e serviços de saúde, já sobrecarregados e com risco de colapso, assim como de cientistas e da parte da população que se guia por suas descobertas e estudos. O magistrado defende a abertura destes estabelecimentos e representa as vontades dos grupos comerciais e financeiros, que, em muitos momentos durante a pandemia, apesar de terem recursos suficientes para interromper as atividades por um período de tempo, movimentaram-se  juridica e midiaticamente para garantir a maximização ininterrupta dos lucros, os colocando em posição de maior importância que a vida de funcionários, clientes e quaisquer outros que pudessem estar em contato direto e indireto. Também exprime o pensamento de parte da população civil que foi influenciada por essa campanha - movida e financiada pelos interesses financeiros desses grupos - de desmoralização das medidas de prevenção ao vírus, a qual também vai de encontro à posição defendida pelo Presidente da República, que representa uma grande força no embate no campo jurídico. Faz-se, aqui, exposta a teoria de como as hierarquias dentro do Direito são decisivas para ditar quem está em posição de o decidir e impor. Argumenta, o juiz, que a decisão do prefeito é ilegítimapois está em posição inferior à do Presidente da República - que havia determinado que as lotéricas deveriam permanecer abertas - por este possuir maior poder simbólico. Diz, então, que “quem não pode o menos (regular horários), não pode o mais (determinar o fechamento).” 

  Os magistrados estão numa posição que lhes confere o dever e a necessidade de adaptar a norma teórica para a realidade, analisar a aplicabilidade prática da estabelecida apenas no papel. É o que se percebe nesta decisão e o que o juiz alega, dizendo ser, o decreto, “de um grau de insensibilidade, falta de proporção e consciência da realidade imperdoáveis”, argumentando sobre a necessidade desses estabelecimentos para a população em geral e como a decisão foi precipitada e inesperada, prejudicando os que necessitam deste serviço urgentemente, o que afetaria principalmente a população de baixa renda. Porém, o juiz, em realidade, ali está para defender os interesses materiais dos donos das lotéricas. Mesmo assim, tenta, como Bordieu teoriza, fazer um argumento baseado na ciência (apesar de criticá-la e classificá-la como arbitrária quando não atende aos seus interesses) tanto jurídica quanto microbiológica, tentando provar, com base em artigos e princípios do Direito e em gráficos que revelam uma leve queda no número de infecções e internações por covid-19 na região de Franca, tanto a inconsistência legal da determinação de fechamento das lotéricas, quanto sua superfluidade. Os dados apresentados por ele visam legitimar e racionalizar sua decisão, dando a ela uma aparência puramente técnica, imparcial e universal. 

   Apesar desta tentativa, a limitar revela fortemente a posição pessoal do juiz frente às quarentenas e lockdowns e utiliza-se da decisão para opor-se a elas. Isto revela o seu habitus, ou seja, o conjunto de influências morais, sociais, religiosas, culturais, políticas e econômicas que predispõem as decisões e atitudes dos indivíduos. Neste caso, percebe-se que o juiz está sob uma bagagem ideológica fortemente influenciada pelas campanhas de relativização e negação da ciência surgidas antes eprincipalmente, durante a pandemia, que tinham o intuito de enfraquecer as medidas de contenção da doença. Percebe-se isto quando ele alega haver uma inconsistência nas determinações científicas e nas organizações que as divulgam e que, por conta disso, elas não poderiam servir como determinantes absolutas para as decisões administrativas do município, considerando que estão sob o “enganoso pretexto de salvar vidas”. Mas esta conjuntura negacionista está envolta de um contexto político conservador e economicamente liberal no qual o juiz também parece ter sua visão submetida. Assim, afirma que decreto de fechamento fere os princípios da legalidade, pois, na sua concepção, ele retira direitos humanos dos proprietários ao restringir a livre iniciativa, alegando que tal situação seria comparável ao estado de sítio ou, até mesmo, comunismo. 

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