segunda-feira, 18 de outubro de 2021

ADPF 467 - Prefeitura de Ipatinga e Bourdieu

 

A PGR impetrou ADPF contra a Prefeitura Municipal de Ipatinga-MG em função de a lei municipal 3.491, de 28 de agosto de 2015, pois esta, em seu artigo 3.º, determinava a proibição de o Poder Executivo Municipal adotar estratégias educativas em temas relacionados à diversidade de gênero e/ou ideologia de gênero e educação sexual. A PGR elencou diversos preceitos constitucionais contrariados pela lei supracitada (direito à igualdade, vedação à censura, laicidade do Estado, competência privativa da União para legislar sobre Diretrizes e Bases da Educação, pluralismo de ideais e de concepções pedagógicas, direito à liberdade de aprender, ensinar e divulgar o pensamento, a arte e o saber.

Ao lermos o voto da procedência e adequação da ADPF, proferido pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, é possível identificar relações com os conceitos do capítulo “A Força do Direito – Elementos para uma sociologia do campo jurídico” da obra “O Poder Simbólico”, de Pierre Bourdieu.

Em seu texto, o Ministro Gilmar Mendes enfatiza que a ADPF é o instrumento adequado para o caso em questão, pois:

- preenche espaço residual expressivo no controle de constitucionalidade

- supre eventuais demoras na definição de decisões sobre importantes controvérsias constitucionais e;

- relevância de interesse público presente no caso.

No transcorrer dos argumentos, é citada a LDB da Educação, que prioriza em seu artigo 3.º pluralismo de ideias, respeito à liberdade e apreço a tolerância.

Bourdieu propõe que a “prática teórica da interpretação de textos jurídicos não tem nela própria a sua finalidade, diretamente orientada para fins práticos, ela mantém a sua eficácia à custa de uma restrição de sua autonomia”. A ADPF, combinada com o conteúdo da Constituição no tocante à distribuição de competências é um bom exemplo – lei municipal tenta limitar a possibilidade de abrangência de opinião em suas escolas contrariando o preceituado pela Constituição e pela LDB federal. Além disso, tal proposta de lei caminha de forma contrária aos ideais de liberdade, respeito à pluralidade de opiniões e prática de tolerância da Carta Maior. A PGR e o STF lançam mão de instrumento jurídico existente com o intuito de proibir tal lei, até porque o relevante interesse público é nítido, pois outros municípios também tentaram propor lei com conteúdo semelhante (Foz do Iguaçu – PR). Assim, os fins práticos propostos por Bourdieu são atingidos com a ADPF – autonomia de instrumentos jurídicos para contrapor à preconceituosa lei são poucos mas os que existem são dotados de eficácia de expor os preconceitos existentes nos representantes do povo no legislativo de uma das cidades do aço mineira.

Em relação ao habitus jurídico, Bourdieu reconhece que “assim como a Igreja e a Escola, a Justiça organiza as instâncias judiciais, os poderes e suas interpretações, bem como normas e fontes que conferem suas decisões.” De forma adicional, “a coesão do habitus espontaneamente orquestrado dos intérpretes é aumentada pela disciplina de um corpo hierarquizado que põe em prática procedimentos codificados de resolução de conflitos”. Dentre as fontes que serviram de base argumentativa para as leis federais citadas por Gilmar Mendes, destacam-se normas e tratados internacionais proibitivas de discriminação dos quais o Brasil é signatário, como:

- Declaração Universal dos Direitos Humanos;

- Convenção Americana dos Direitos Humanos;

- Pacto Internacional sobre Direitos Civis.

Percebe-se, assim, que a coesão do habitus, ao menos na esfera federal, tem sido pautada com razoabilidade pelo respeito e pelo combate à intolerância de esferas estaduais e municipais (alguns juízes de primeira instância acham que movimentos feministas subvertem a ordem e produzem degradação moral, conforme outro julgado proposto pelo Professor Agnaldo).

Ao analisarmos o campo jurídico sob a ótica de palco de conflitos entre a lógica da ciência e a lógica da moral, pode-se conferir o papel da lógica ao aparato instrumental jurídico da União e da carta Maior no caso da ADPF 467. A constituição federal abarca o respeito e a tolerância como valor fundamental à dignidade humana sob a égide de que a nação brasileira caminha consoante às necessidades mundiais de respeito aos direitos humanos. No microcosmo municipal, a Câmara Legislativa de Ipatinga efetuaria o papel de tentar impor lógica moral, em que apenas um dos dezenove vereadores da casa supracitada votou contra a lei (https://www.diariodoaco.com.br/noticia/0072704-ministro-do-stf-suspende-lei-que-proibia-ensino-sobre-genero-e-orientacao-sexual-em-ipatinga).

De acordo com Bourdieu, a “universalização é um mecanismo poderoso a partir do qual se exerce a dominação simbólica ou a imposição de legitimidade de ordem social. A norma jurídica tenta consagrar em forma de um conjunto coerente de regras oficiais os princípios práticos de um estilo de vida simbolicamente dominante, tendente a informar as práticas dos agentes. Tal efeito de normalização aumenta a autoridade social que a cultura legítima e seus detentores já exercem para dar eficácia prática à coerção jurídica.”  A LDB propõe que a tolerância e a pluralidade de aprendizado é valor social para a formulação de políticas públicas de ensino, e tal valor possui simbologia poderosa para confrontar intolerância em geografias pontuais. A coerção jurídica é atingida pela legitimidade cultural da pluralidade abarcada por lei federal e por instrumento de suspensão legal local.

Por fim, Bourdieu trata da “regra de direito capaz de supor a conjunção da adesão a valores comuns marcada ao nível do costume, pela presença de sanções espontâneas coletivas como a reprovação moral.” A casa legislativa de Ipatinga tentou suprimir das práticas locais educacionais a tratativa de assuntos de ideologia de gênero, em uma clara tentativa de dar a esses temas qualificações reprováveis sob o ponto de vista moral. A coletividade elegeu vereadores que entendem que é sancionável o município abarcar assuntos do tipo em sua educação de base. Talvez as verbas de gabinete devam ser mais bem utilizadas na contratação de assessores jurídicos, com o intuito de poupar tempo da Procuradoria do município e de propor leis mais úteis e respeitosas aos interesses difusos e coletivos.

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