segunda-feira, 18 de outubro de 2021

a descriminalização do aborto dentro de uma perspectiva sociológica de Pierre Bourdieu.

    O voto do ministro Luís Roberto Barroso, concernente às acusações de Rosemere Aparecida Ferreira e Edilson dos Santos, os quais cometeram os crimes previstos nos artigos 126( provocar aborto com o consentimento da gestante) e 128( formação de quadrilha), foi notório no sentido de elevar pautas muito importantes ao debate contemporâneo sobre a criminalização do aborto.

    Os acusados em questão foram presos em flagrante por manterem clínicas ilegais que realizavam abortos, inclusive sendo pegos após a morte de uma jovem com pouco mais de 3 meses de gravidez, que se propôs a realizar a interrupção forçada de sua gestação. No entanto, embora tais atos tenham sido configurados como crimes nos pareceres da 4º Câmara Criminal e do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, no entendimento do ministro Marco Aurélio do STF, devido a sua análise do caso concreto, o habeas corpus seria cabível, uma vez que “não estão presentes os requisitos necessários para a decretação de prisão preventiva, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal.”. Tal decisão é sustentada pelos bons antecedentes dos acusados, pelos mesmos possuírem trabalho e residência fixa, pelo fato de que a condenação pode ser cumprida em regime aberto, além da não tentativa de fuga dos pacientes durante o flagrante.

    Diante desses fatos, Barroso não só concorda com a decisão pelo habeas corpus, como também vai além ao afirmar a necessidade de considerações a respeito da situação da mulher e dos prejuízos referentes a criminalização do aborto na sociedade contemporânea. Nesse sentido, o ministro afirma que “O bem jurídico protegido – vida potencial do feto – é evidentemente relevante. Porém, a criminalização do aborto antes de concluído o primeiro trimestre de gestação viola diversos direitos fundamentais da mulher, além de não observar suficientemente o princípio da proporcionalidade.”. Apesar de defender a não criminalização do aborto antes do findar do primeiro trimestre de gestação, Barroso afirma categoricamente que tal procedimento deve ser entendido como excepcional, uma vez que o mesmo é pernicioso tanto para a integridade física como mental da mulher. Por isso, cabe ao Estado atuar em medidas que visem a educação sexual de todos, a disseminação do uso de contraceptivos e do amparo às mães que desejem ter filhos, mas encontram-se em casos mais frágeis socialmente, para que, justamente, a prática do aborto seja uma medida rara e diligente.

    Entretanto, mesmo que seja necessário evitar tal prática, a sua proibição consiste em diversas restrições aos direitos fundamentais da mulher, em desigualdade com as liberdades muitas vezes fornecidas apenas aos homens. Como elenca Barroso, a criminalização da prática de aborto restringe a mulher desde a supressão de sua autonomia, ou seja, de suas escolhas concernentes ao próprio corpo; a violação da integridade física e psíquica, uma vez que a gravidez afeta uma mulher em ambos os quesitos; a violação dos direitos sexuais da mulher, pois a mesma encontra-se limitada em suas decisões de manter ou não a gestação; a violação da igualdade de gênero, devido a visão de apenas a mulher carregar o ônus da gravidez e ser obrigada a mantê-la; além de uma clara discriminação social, uma vez que as mulheres mais pobres, as que, por sua vez, mais sofrem com uma gravidez indesejada, são as maiores vítimas de práticas abortivas engendradas em clínicas não especializadas e não seguras, sendo as mais suscetíveis, consequentemente, a casos de óbitos ou lesões.

    A partir de tudo até então dito neste texto, faz-se crer que Barroso, assim como Marco Aurélio, ao decidirem pela não criminalização do aborto antes do primeiro trimestre de gestação, optam por uma postura discordante com a da maioria dos juristas brasileiros. Isso se afirma, uma vez que, majoritariamente, o corpus jurídico adota uma postura de neutralidade do direito, ao conceberem o campo jurídico como uma ciência não vinculada a nenhum outro campo. Assim como Kelsen, muitos dos juristas preferem o entendimento do direito como separado da concretude social, não levando em consideração as pressões sociais da sociedade. Bourdieu afirma, nesse sentido, que a Ciência do direito deveria se construir afastando-se do instrumentalismo, que fundamenta no direito os conceitos de seu uso como ferramenta de dominação

    A teoria do habitus  de Bourdieu é muito assertiva, pois demonstra que, por possuírem um mesmo passado (advirem de famílias de uma classe social abastada, e terem, consequentemente, uma educação e uma cultura mais erudita) muitos dos juristas que se formam acabam assemelhando-se em suas visões de mundo, o que denota a perspectiva conservadora e retrógrada muitas vezes evidenciada em suas decisões judiciais. Ao usar de conceitos como a autonomia do direito, ou como a atuação do jurista deve pautar-se dentro do “espaço dos possíveis”, o jurista está verdadeiramente blindando-se da realidade circundante, decidindo apenas conforme suas próprias vontades, vontades essas similares a de outros partícipes do direito que compartilham do mesmo ethos dominante no campo jurídico.

    Os positivistas, ao atribuírem ao direito uma racionalidade pura, notadamente prevista na teoria pura do direito muitas vezes utilizada pelos mesmos, estão, na realidade, dando abertura a todo e qualquer tipo de decisão arbitrária dos magistrados, visto que a rigorosidade das normas jurídicas legisladas não atendem, na maioria das vezes, ao caso concreto. É nesse contexto que Kelsen afirma que “a decisão judicial provém de um ato de vontade”, o que demonstra, por sua vez, a visão dominante do magistrado atuando em suas decisões judiciais. Percebe-se que a racionalização da ciência jurídica, que fomenta, por sua vez, o rigorismo das normas e a tecnicidade da linguagem jurídica, servem muito mais como instrumentos de legitimação da discricionariedade dos juristas, do que formas de se estabelecer, mediante uma lógica racional, maneiras de se ordenar a sociedade, atendendo aos anseios populares e remediando os males existentes na realidade social.

    A teoria pura do direito é, para Bourdieu, uma ficção, uma vez que na realidade o ethos dos juristas influenciam vigorosamente nas suas criações jurídicas, assim como atuam na tendência das decisões dos magistrados referentes ao caso concreto. Portanto, a moral, no caso aquela característica das classes dominantes, influi no direito, mesmo que mascarada por uma suposta neutralidade, concretizada apenas pro forma.

    Ao se debruçar nas análises de Bourdieu, e tendo em vista a posição conservadora brasileira em relação a criminalização do aborto, vê-se que as decisões de ambos os ministros vai de encontro a visão dominante dos juristas, uma vez que se pautam numa visão preocupada com as restrições históricas perpetradas aos direitos fundamentais femininos, além de possuir embasamento em outros campos que não seja apenas o jurídico, como o moral (Barroso inclusive cita Robert Alexy, grande representante do moralismo jurídico), apesar de se validar principalmente usando dos preceitos constitucionais e de teorias e argumentos notadamente jurídicos.

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