segunda-feira, 23 de agosto de 2021

"Uma interpretação materialista de uma realidade etérea"

        Cercados por um contexto de intensas mudanças sociais, econômicas e políticas, os filósofos Karl Marx e Friedrich Engels foram responsáveis por desenvolver em conjunto obras que mudariam o entendimento das relações humanas para sempre. O socialismo, que era uma doutrina política anterior aos pensadores, determinava a urgência de lutar por uma sociedade mais igualitária, haja vista que as mudanças provocadas pela Revolução Industrial estavam levando a classe trabalhadora a uma miséria cada vez mais profunda. Engels e Marx, então, apenas realizaram uma investigação organizada e sistemática do pensamento socialista para elaborar uma teoria econômica que fosse efetiva. O reconhecimento da exploração da classe proletária, provocada pela burguesia – detentora dos meios de produção - foi o principal ponto de partida dessa análise revolucionária da conjuntura.

“O movimento é o modo de existência da matéria”. A célebre frase dita por Engels sintetiza a ferramenta que deve ser utilizada para compreender a realidade historicamente construída: a dialética. Nesse sentido, a história é observada como algo em movimento, tornando-se transitória e passível de transformações pela ação humana; é justamente por meio dessa relação dialética entre o ambiente, os seres e os fenômenos naturais que a cultura e a sociedade constituem o mundo e, ao mesmo tempo, são modeladas por ele. Em oposição ao idealismo hegeliano, o materialismo histórico e dialético de Marx e Engels é essencialmente defensor da mudança social. O conceito de “materialismo” é utilizado para evidenciar a característica da sociedade de definir-se por sua produção material, enquanto a “dialética” é consequência do entendimento de que a história da humanidade é a história da luta de classes opostas, constituindo uma relação dual. Dessa forma, para os teóricos, o idealismo está em um plano de imobilidade metafísica das classes e, por isso, é incapaz de concretizar modificações relevantes, o que deve ser superado por uma teoria que promova exatamente o oposto: uma revolução social que subvertesse a ordem vigente de poder da classe dominante sobre a classe dominada, permitindo que o proletariado estabelecesse um governo de uniformidade social.

Avançando historicamente, novas maneiras de apreender a realidade e examinar o que está por trás das relações humanas foram surgindo, como as teorias do sociólogo e historiador norte-americano Richard Sennett. Em sua obra “A corrosão do caráter: consequências do trabalho no novo capitalismo” o pensador, assim como Marx e Engels, trilha uma profunda reflexão sobre as influências do capitalismo no funcionamento do corpo social, referindo-se não ao capitalismo industrial, mas sim a um sistema informacional e flexível. Sob a suposta necessidade de polivalência no mercado de trabalho, o comportamento profissional dos indivíduos está sendo influenciado por forças que atuam através da reinvenção descontínua das instituições, da especialização flexível de produção e da concentração de poder sem centralização. Em um mercado em que reinventar a empresa e flexibilizar a produção são uma regra, o objetivo principal é o retorno a curto prazo e a pronta resposta à demanda do consumidor.

Logo, para saciar esse crescente desejo pelo resultado imediato, é necessário acelerar os processos mediante a permissão de que os funcionários tenham mais controle sobre suas atividades. Esse novo sistema é construído sob a falsa ideia de aumento da liberdade individual ao mesmo tempo em que é concedido às empresas uma vigilância ainda mais problemática, operada via novas tecnologias de informação e precursora de formas mais sofisticadas de dominação. Essas exigências de flexibilidade na atuação profissional e a inexorável fugacidade das relações trabalhistas estariam, de acordo com Sennett, colaborando para o enfraquecimento dos valores como o compromisso, a confiança e a lealdade, indispensáveis para a consolidação do caráter humano. Para o autor, a banalização desses princípios é resultado da superação das relações trabalhistas de longo prazo e estaria disseminando na vida social a adoção de relações mais voláteis em detrimento das mais permanentes, definhando a comunidade e interferindo até na formação do caráter das crianças, que não vêem mais na rotina dos pais a virtude que eles pregam.

Confrontando essas duas abordagens, é possível perceber que, através de novas perspectivas, a dominação de uma classe sobre outra ainda se faz presente. Tendo em vista que o capitalismo e suas produções materiais tem a capacidade de impactar a vida de todos os indivíduos no globo, é simples notar que os princípios dominantes são propagados como o interesse comum de todos os membros da sociedade e, por conseguinte, são universalmente aceitos. Em uma atmosfera de amplo crescimento da globalização e da cooperação superficial, aplicar a metodologia do materialismo histórico e dialético exige que seja feito uma análise prévia das condições de vida para determinar se a comoção revolucionária será suficientemente forte para derrubar as bases pré-estabelecidas. Entretanto, como afirma Sennett, o tempo presente é caracterizado pela mudança individual permanente e pela consequente destruição criativa, que demanda pessoas confortáveis em relação a não saber o que virá ou a não saber calcular as consequências da mudança. Desse modo, pôr em prática a superação do modo de produção existente em um meio no qual as forças produtivas se confundem constantemente, devido à superficialidade, é quase que inviável, uma vez que a produção material é instável e a despreocupação com os resultados são um empecilho para o desenvolvimento prático da subversão, que poderia acabar em demonstrações de dominação ainda mais complexas.

Giovanna Cardozo Silva - Turma XXXVIII - matutino

 

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