domingo, 8 de agosto de 2021

Durkheim previu a cultura de cancelamento

   Enquanto juízo de valores sempre houve, atualmente esse ato deu origem a um fenômeno que impõe de forma velada uma determinada norma de conduta, através da sanção do que se desvia de tal. Esse evento comum da modernidade, que principalmente se manifesta em redes sociais é denominado como cultura do cancelamento, sendo a mesma parte da progressão dos meios de controles sociais descritos pelo sociólogo Durkheim.

    Segundo o pensador, a sociedade, para manter os seus membros dentro dos padrões normativos por ela estabelecidos, pressiona os indivíduos por meio da ameaça de repreensão, seja por meios violentos como encarceramento ou por métodos sutís como ostracismo pelo resto da sociedade. Tendo em mente essa reflexão do pensador, percebe-se que a cultura do cancelamento, que ocorre quando algum comentário ou ação realizada, seja online, no mundo real ou em ambos, não sendo necessário que o ato seja recente. O caso de Scott Cawton, criador da franquia Five Nights at Freddy's, que foi cancelado após ter sido tornado público o fato do mesmo ter realizado doações monetárias à políticos de direita estadunidenses é um indicador de que esse fenômeno pode ocorrer devido ao mero posicionamento político de alguém, sem ter sido realizado crime ou ato convencionalmente considerado como imoral pelo cancelado.

    Todavia, a cultura de cancelamento pode ser uma ferramenta para forçar o afastamento e responsabilização de pessoas que cometeram atos hediondos, porém são acobertados devido a seu status social ou econômico, como o caso da empresa Activison-Blizzard, que não tomou providências a respeito dos inumeros casos de assédio sexual perpetrados por seus membros, culminando em uma maior visibilidade de tal problema e comprovando o potêncial desse fenômeno de ser uma ferramenta para a execusão de justiça contra aqueles que anteriormente eram dados como intocáveis. Entretanto é necessário a ressalva que do mesmo modo que a cultura do cancelamento pode promover uma responsabilização de atos criminosos, também pode causar a perseguição de alguém apenas pelo mesmo não aderir à mentalidade do grupo com maior presença social.

    É possível afirmar que a crescente presença do ocorrido aqui tratado é decorrente da necessidade da sociedade punir aqueles que a mesma julga como "errados", com seu aumento em uso sendo decorrente do sentimento cada vez maior na população de impunidade por aqueles que cometem crimes, principalmente quando estes são figuras influentes. Fatos como no Brasil investigações a respeito de corrupção, que mesmo quando resultando em prisão a cela do preso ainda é mais luxuosa que a casa de muitos brasileiros, ou EUA tendo um ex-presidente que abertamente incitou insurgência violenta de seus apoiadores após não aceitar sua perda nas eleições e mesmo assim não sofrendo represália significativa do sistema judiciário, colaboram para a criação desse sentimento de impotência da justiça. Logo, há o fomento do desejo de que justiça seja executada, resultando na cultura de cancelamento sendo utilizada como uma meio dos indivíduos saciarem esse anseio, mesmo que resultando em uma resposta desproporcional à suposta infração ou desvio da moral.

    Pela própria natureza punitiva do cancelamento, se enquadrando como uma sanção não violenta prevista por Durkheim, pressionando indivíduos pelo medo de represália à agirem do modo considerado como "correto" pela maioria, ou pelo menos pela parcela mais vocal sobre o que consideram como adequado e moral. Desse modo, o fenômeno também se qualifica como um fato social, por não depender da ação de um único indivíduo, forçar os membros da sociedade a aderirem a ele a partir do temor de uma sanção, nesse caso sendo o ostracismo e o estigma de ter sido cancelado, e ser amplamente presente e empregado no momento atual. Portanto, a existência da cultura de cancelamento é uma continuação do longo processo histórico da sociedade forçar de modos indiretos comportamentos que a mesma julga como adequados, tornando o ato de ser aberto com sua posição política sendo vista na contemporaneidade da mesma forma o período colonial enxergava uma mulher não ter ser casada após os 30 anos de idade: uma quebra do esperado e portanto motivo de exclusão do indivíduo dos círculos sociais e motivo de ridicularização.

 Rafael Nascimento Feitosa, Direito Diurno

    

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