domingo, 8 de agosto de 2021

 

Cultura do cancelamento sob uma perspectiva durkheimiana

Para o pensador Émile Durkheim, o fato social (objeto de estudo da Sociologia) seria “toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior”.  É externo – dessa forma se difere do objeto de estudo da Psicologia, por exemplo – porque existe fora das consciências individuais. É coercitivo, pois exerce uma imposição social, ainda que às vezes imperceptível (Durkheim compara esse caso com o peso do ar, que, mesmo despercebido, continua presente e influencia o cotidiano). É, ainda, geral, pois pode se manifestar nas individualidades, mas se trata de uma dinâmica social de existência própria.

Diante dessas premissas, é essencial reconhecer os fatos sociais como unidades que compõem o fenômeno - exclusivamente humano - da cultura imaterial. Com o passar do tempo, as gerações vão acumulando conhecimentos acerca de determinados modos de “fazer”, como, por exemplo, os relativos à construção de moradia ou à alimentação. Tais exemplos, contudo, consistem em suprir necessidades básicas da vida e o fato social é um fenômeno mais amplo, que atinge o campo dos costumes, isto é, do sentir e do pensar de determinada maneira. Este tipo de fato social é exemplificado por Durkheim com o idioma e o sistema monetário. Ninguém é obrigado a se comunicar com a língua adotada por seu país, ou a utilizar determinada moeda, mas é impossível viver de outro modo. Daí se exprime a coletividade intrínseca aos fatos sociais, visto que é exatamente a vida em sociedade que os sustenta.

De início, não aparenta haver algo de errado com os fatos sociais, pelo contrário, parecem ser elementos essenciais para manter a ordem e possibilitar a fluidez da vida em sociedade. Contudo, na atualidade, os fatos sociais do espectro do pensar e do sentir, por vezes, se manifestam como uma forma de autoritarismo velado. É o caso da cultura do cancelamento. O fenômeno do cancelamento surgiu principalmente como uma forma de chamar a atenção de indivíduos que fizessem algum tipo de manifestação preconceituosa em relação às minorias sociais. A cantora Anitta, por exemplo, já foi acusada de se valer de estereótipos da população LGBT  e da negritude para fins comerciais, sem abraçar de fato essas causas tão proeminentes no Brasil contemporâneo, e, por isso, perdeu patrocínios. Esse caráter punitivo-corretivo em sentido estrito apresenta a nobreza de tentar construir um mundo mais plural e inclusivo. Entretanto, o termo “cultura do cancelamento” nasceu com um viés pejorativo do fenômeno, pois há quem alegue um autoritarismo velado e um falso moralismo exacerbado no ato. Evidentemente, não são raros os casos de pessoas que não só sofreram boicote por seus erros, mas foram verbalmente agredidas até o ponto de necessitarem de auxílio psicológico no enfrentamento da situação.

Nesse olhar, é interessante traçar um paralelo com uma ressalva feita pelo Durkheim acerca dos fatos sociais, qual seja, que nem sempre a explicação dos fatos sociais se vincula às necessidades sociais imediatas. No caso do cancelamento, o que se vê na prática é uma necessidade social dos indivíduos reafirmarem o seu valor moral e os seus costumes/pensamentos “direitos” de acordo com o que vige no pensamento coletivo, em determinado momento histórico. É uma forma de exibição de qualidades do mesmo modo que uma foto em redes sociais, por exemplo, mas, nesse caso não qualidades físicas, e sim qualidades admiráveis de comportamento.

Por fim, tem-se que é interessante e atual a análise de Durkheim sobre o conjunto social e são muito pertinentes, sobretudo, as observações acerca dos costumes e da validação social (muitas vezes, velada) procurada coletivamente por meio de práticas e instituições arraigadas. Ademais, é válido pontuar, para não incidir em anacronismo, que Durkheim constata essas necessidades sociais mais complexas e não tão evidentes de início, todavia, não é realizada uma análise de juízo de valor sobre elas.

Isabela Mansi Damiski - Direito matutino XVIII

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