domingo, 22 de agosto de 2021

Areia Movediça

Minha vó, trabalhadora do lar. 

Minha amiga, vendedora de bolos.

E eu, por enquanto, estudante. 

Três mulheres e três ocupações.


Vó, que passa horas da rotina

varrendo a calçada da sua casa, 

num ato religioso de lutar contra a

poeira: vive os mesmos dias pra sempre.


E não quer que mude, não 

entende quando a realidade 

ultrapassa a previsão da rotina 

de entrega pra casa e pra família. 


Amiga, que vende bolos com 

seu filho no colo, acostumou-se 

com a instabilidade do novo, ou 

da não garantia de salário no mês. 


Cozinha, limpa, cuida, atende 

clientes, faz um instagram pra loja e 

lá coloca os reels da nossa geração. 

Uma jovem empreendedora, dizem. 


Eu, por enquanto, estudante, 

engulo litros de ansiedade por dia 

na procura de estágios futuros 

e entrega de trabalhos presentes. 


Uma produtividade que assola 

meus instantes traz consigo a 

volatilidade do mercado de trabalho 

e frágil manutenção da universidade. 


Vó, amiga, eu: três mulheres 

em face do tempo-espaço 

feito de areia movediça,

engole até quem resiste. 


Vó foi presa nas amarras 

do trabalho não remunerado

da casa, entregue sempre às 

mulheres, sem ser contestado.


Não escapou da realidade

instável que a faz roer as 

unhas quando o neto não vem 

pro jantar, pra trabalhar na Uber. 


Amiga- também mãe- que trabalha 

na casa e vende bolos pro seu sustento.

Conheceu a pior face do mundo flexível. 

(Des)dobra-se tanto que é mais de uma. 


São três ocupações em uma só mulher, 

fadada por um nome cravado em si: o 

empreendedorismo, maquiagem para o

cansaço de uma vida pouquíssimo digna.  

 

Eu, estudante, que observo o mundo 

e absorvo a amargura de suas relações. 

Os tempos e formas de trabalho mudam, 

a miséria, exploração e opressão continuam.


E até mesmo quem se deu conta de como 

é a vida quando submetida ao capitalismo,

rende-se, de corpo todo atado, na imobilidade

do neoliberalismo: trabalho, trabalho ou trabalho? 


Vendem-nos um discurso de liberdade 

perante à volatilidade dos tempos atuais. 

Em um mundo de imprevisibilidade,

acham que nós fazemos nossas escolhas. 


O que se percebe sobre essas falsas

simetrias entre incerteza e mobilidade, é

que há uma fixidez em tudo isso:

a exploração da maior parte, pelo proveito da minoria. 


Tempos e tempos de mais-valia. 


Letícia Magalhães, Noturno.

Nenhum comentário:

Postar um comentário