sábado, 3 de julho de 2021

Crise de percepção. A humanidade contemporânea sob a ode metódica e mecanicista da modernidade.

"(...)

Yo no soy sino la red vacía que adelanta

ojos humanos, muertos en aquellas tinieblas,

dedos acostumbrados al triangulo, medidas

de un tímido hemisferio de naranja.

Anduve como vosotros escarbando

la estrella interminable,

y en mi red, en la noche, me desperté desnudo,

única presa, pez encerrado en el viento."

NERUDA, Pablo. Antologia Poética. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.

Ouso aqui diferente do que se vê no  filme “O ponto de mutação”, produção inspirada no livro de Fritjof Capra , onde dentre outras fontes, irei tomar como referência certos trechos e reflexões, começar pelo fim. Começo analisando a angústia do autor trazida pelo personagem Thomas Harriman; o homem de tanto subjugar a natureza a sua racionalidade vai de predador á criatura passiva, com muito tom de melancolia, torna-se presa. E se há uma presa há também um predador, que poderia ser a natureza com seus intermináveis mistérios (numa visão mais poética e metafísica), porém , o homem tornou se presa dos mecanismos da própria humanidade, que muito desumanamente, ao se ver como indivíduo além da natureza tornou-a sua escrava “A natureza devia ser caçada, posta para trabalhar, escravizada.”, um desejo baconiano tornou-se realidade.

Em ode ao ideal evolutivo que surgiu com a modernidade, teremos portanto a desenfreada exploração da Terra e seus recursos sem nenhuma perspectiva geracional. Tal problemática abordada durante o longa nos traz à atualidade caótica onde o capital, aqui numa perspectiva de mecanismo do próprio homem, subjuga os outros homens e impõe por sua vez condições que levam a ignorância da própria existência, quando não á defesa dos próprios grilhões.

A crise de percepção, vem não somente pela alienação da própria condição imposta pelo paradigma mecanicista, como também na crise da percepção do tempo histórico. Observemos por exemplo, que ali no filme, o ambiente em questão é uma ilha afastada da realidade do mundo e com todas as características medievais conservadas, tal realidade não é possível com os conhecimentos já adquiridos pelas personagens contemporâneas; então por que a insistência em manter os paradigmas da modernidade seria aceitável no mundo contemporâneo? Qual a conveniência dessa perspectiva?

Ao final, Thomas, personagem mais observador de todo o longa declama Pablo Neruda e traz a reflexão que pode ser a mais pertinente e paradoxal de todas; insistimos em tal perspectiva não por falta de conhecimento, mas por que tão metodicamente construímos uma rede da qual não conseguimos mais nos desprender. Portanto tomo a liberdade ainda de acrescentar um paralelo com Drummond que em seu poema "A maquina do mundo", talvez como anseio ou tradução de sua angústia, ao perceber a realidade na qual a humanidade se colocou nega se a desvendar os mistérios do universo, pois sabe que ao conhecer o universo jamais nos voltaríamos a um mundo fechado e controlável.

A Máquina do Mundo
Carlos Drummond de Andrade
E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
 
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
 
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
 
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
 
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
 
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
 
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
 
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
 
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
 
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
 
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
 
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de
 
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
 
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
 
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
 
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”
 
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
 
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos
 
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
 
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,
 
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:
 
e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,
 
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.
 
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
 
a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
 
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
 
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
 
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
 
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
 
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
 
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
 
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.
 (Folha de São Paulo, 2002, p.20)

Stephani E. C. Luz

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