domingo, 23 de agosto de 2020

Ser flexível?

O livro "A Corrosão do Caráter", de Richard Sennet, se utiliza adequadamente do método e da concepção materialista histórica dialética marxista para avaliar e analisar o capitalismo vigente, com todas suas características e meios de se aproveitar do trabalhador e de desenvolver formas de aumentar a desigualdade social, na medida que otimiza o lucro empresarial em detrimento da dignidade do empregado e do vínculo trabalhista-legal entre empregador e empregado.

Sennet se utiliza desse método na medida em que escreve sobre o capitalismo flexível se pautando na experimentação material de indivíduos no mercado de trabalho, seja na experiência de Rico ou da dona de padaria que recebe uma oportunidade para trabalhar em uma agência. Isso se alia muito ao método materialista marxista na medida em que "parte da terra ao céu", em vez de partir do céu a terra, pois concebe materialmente os reflexos da flexibilização do trabalho no capitalismo e as eleva a um grau de conceitualização sobre o como essa flexibilidade influencia e altera a perspectiva de valores pessoais dos indivíduos. 

Marx e Engels escrevem em "A Ideologia Alemã": "Simultaneamente, e devido à divisão de trabalho no interior dos diferentes ramos, assiste-se ao desenvolvimento de diversas subdivisões entre os indivíduos que cooperam em trabalhos determinados.". Essa afirmação é muito correta, uma vez que o mundo contemporâneo é marcado pela completa segmentação e amplitude de serviços, desde a produção de determinado bem em um outro país, até o motorista da moto do frete que distribui esse produto nos domicílios. 

Essa característica de sociedades capitalistas desenvolvidas gera alguns fatores a serem discutidos e observados, como por exemplo a questão da flexibilização do trabalho, denotada no livro "A Corrosão do Caráter", a qual introduz os meios pelo qual as empresas se comportam com a finalidade de abrir mão de alguns vínculos trabalhistas e pessoais com seus trabalhadores. Ou seja, a grande segmentação do trabalho, observada por Marx e Engels, conversa muito com a tentativa das empresas de não se filiarem diretamente com seus empregados. A exemplo disso utilizo a recente greve dos entregadores, a qual reivindicava, entre outras coisas, melhores remunerações e seguro por roubo e acidente, visto que, senão o logo das empresas estampado na roupa dos entregadores, qual a relação deles com a empresa? 

A resposta é clara, nenhuma. A reivindicação por seguro por roubo ou acidente é necessária não só por dignidade humana, mas como uma forma de se materializar o vínculo do empregado e do empregador em caso de um problema no trabalho. Além disso, o aumento da remuneração é exigido pela razão de que o entregador também é uma pessoa digna e precisa de dinheiro para viver, muito embora algumas pessoas não consigam respeitar e entender isso, vide o triste episódio de racismo em Valhinhos, sofrido por Matheus Pires Barbosa. 

A relação entre a divisão do trabalho de Marx e a flexibilidade do trabalho exposta por Sennet convergem no sentido de que a constante divisão do segmento produtivo permite às empresas se distanciarem, ainda mais, de seus empregados conforme a pirâmide empresarial vai para a base. Desse modo, é interessante para as empresas explorarem, arduamente, os empregos menos formalizados e mais simples, na medida em que aumentam seu lucro e produtividade ao custo de uma condição precária de trabalho para o indivíduo. Ou seja, no cenário do capitalismo flexível vigente, a mais valia é aproveitada sem pudor, pois o trabalhador é inserido em um meio completamente de desamparo e desproteção trabalhista em relação ao seu empregador. 

Por fim, entendo que a flexibilidade do trabalho também dialogue muito com a condição de alienação do trabalhador, desde muito averiguada por Marx. Não somente os trabalhadores de cargos mais simples sofrem uma alienação, mas também até grandes executivos de grandes corporações, uma vez que mesmo o indivíduo não tendo um vínculo trabalhista com a empresa, sendo apenas seu "associado", o mesmo é capaz de defender a bandeira da empresa e se identificar pessoalmente com ela, como se fosse uma espécie de outra casa. Contraditoriamente, a empresa não está muito preocupada com o trabalhador, de tal maneira que possa dispensá-lo quando precisar ou quiser, como foi o caso da IBM, retratada nos capítulos finais de "A Corrosão do Caráter". 

João Cenamo Baldi de Freitas - 1º ano de direito matutino 

Fontes: 

SENNETT, Richard. A Corrosão do Caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. 14ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.

MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. “Feuerbach – Oposição entre a concepção materialista e a idealista”.
In: A Ideologia Alemã (1845-1846). São Paulo: Martins Fontes, 1998. [p. 05-55]

A greve dos entregadores. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2020/06/29/brequedosapps-promove-mobilizacao-e-pede-apoio-a-greve-dos-entregadores.htm




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