segunda-feira, 24 de agosto de 2020

 

Sennet e a “Tinderização” dos Relacionamentos


O início do “late stage capitalism” é marcado pela transformação dos empregos – antes extremamente regulados e milimetrados na sociedade fordista – em atos temporários, pois a evolução dos sistemas monetários e a busca incessante de lucros requer a reinvenção constante de novas formas de consumo. Essa mudança promovida por um “capital impaciente” é realizada pois se acredita que o rápido retorno é o resultado de mudanças institucionais cada vez mais frequentes.

Para a realização dessas transformações constantes, as próprias estruturas das organizações e corporações acabam se flexibilizando, deixando para trás a hierarquia restrita e sólida e se reformando em formato de redes, onde todas as partes são dinâmicas e formuladas especificamente para sua própria reconstrução recorrente, sendo essencialmente substituíveis. Isso faz com que a lealdade institucional, histórica da burguesia clássica do fim da Idade Média com a formação das guildas, seja superada para adaptação deste novo tempo de trabalho, seja superada devida a incerteza causada pela presença de catástrofes econômicas iminentes.

O principal argumento de Sennet é que essa hipercompetitividade, que vem essencialmente da fragmentação da atividade de produção, afeta o estado e os costumes emocionais das pessoas, “corroendo seu caráter”. A ideia de que o pensamento e o modo de ser da classe dominante se torna, em si, dominante em uma sociedade não é único de Sennet, considerando que Durkhein já comenta sobre o poder coercivo do fato social e como “cada um é arrastado por todos”. Na lógica de Sennet, então, esse tipo de coerção é expressado na ideia de que os valores dominantes se expandem como universalmente válidos.

Nessa sociedade, então, que está em um constante risco de colapso, que despreza o comunitário, onde todos os objetivos e todas as procuras são de curto prazo, como é possível manter um senso de identidade intacto e pouco mutável? Como conciliar a criação de laços duradouros e de objetivos de longo prazo em uma cultura individualista que, não apenas incentiva a mudança incessante, mas a torna necessária para a sobrevivência dentro desta?

A resposta, até agora, é incerta. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existe, simultaneamente, uma diminuição na taxa de casamentos e um aumento considerável na taxa de divórcios. Enquanto é comum associar essas estatísticas com a ascensão do status da mulher e as mudanças nos papéis de gênero no país, é possível atribuir a ela, também, essa dificuldade contemporânea no estabelecimento de relações de duradouras, a essa “tinderização” do sentimento.

O Tinder é um app de encontro que utiliza de sua localização parar gerar potenciais parceiros perto do usuário. Basicamente, se cria um perfil simples com foto, nome, idade e interesses simples e, se a pessoa estiver interessada, é necessário apenas deslizar para a direita. Quando duas pessoas estão mutualmente interessadas, é criado um “match” e o aplicativo permite o início de uma conversa.

Esse tipo de mecanização extremamente impessoal do romance, que mais se assemelha com a análise de documentos necessária ao cruzar fronteiras que com socialização de verdade, é sintomático de uma sociedade e, principalmente, de uma geração, que cresceu inserida em um late state capitalism catastrófico, onde nada parece fixo e duas crises econômicas globais aconteceram com apenas 10 anos de distância uma da outra. O Tinder não foi projetado para a criação de conexões profundas entre seus usuários, é impossível reconhecer se uma pessoa é compatível com a outra apenas através de rótulos simples, ele foi criado para tentar saciar superficialmente a necessidade contemporânea de proximidade, sem romper com o conforto e segurança da impessoalidade.

Esse tipo de comportamento, resultado de um efeito dominó que se inicia com o estabelecimento de um novo tempo de trabalho, possui efeitos concretos. Apesar, da contemporaneidade pertencer as gerações que são as mais informadas sobre saúde mental e doenças psicológicas, o suicídio ainda se tornou a segunda maior causa de morte de jovens entre 15 a 29 anos mundialmente. Apesar de não ser sua causa única, a depressão, a ansiedade, o alcoolismo, são todos afetados for essa solidão inerente na vivência do novo século. Se o ser humano realmente é um animal social, a corrosão da parte do caráter das pessoas que as ligam, umas às outras, resulta na corrosão da própria ideia de humanidade em si.


Bibliografia


ELER, Alicia. Tinderização do sentimento. Manual do Usuário, 2016. Disponível em: <https://manualdousuario.net/tinderizacao-do-sentimento/>


Um suicídio ocorre a cada 40 segundos no mundo, diz Organização Mundial da Saúde. Conselho Nacional de Saúde, 2019. Disponível em: <http://www.conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/809-um-suicidio-ocorre-a-cada-40-segundos-no-mundo-diz-organizacao-mundial-da-saude >


Um a cada três casamentos termina em divórcio no Brasil. Veja, 2018. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/brasil/um-a-cada-tres-casamentos-termina-em-divorcio-no-brasil/ >


SENNET, Richard. A corrosão do caráter. 14 Edição. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999.



Isadora Lima Ribeiro - Direito/ Noturno (1o Semestre)


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