domingo, 9 de agosto de 2020

A "regra" na sociedade neoliberal

             O livro “Sapiens: uma breve história da humanidade” trata da evolução do homem ao patamar de animal predominante no mundo e sua prevalência sobre as demais espécies humanas. Não descartando a possibilidade de conflitos entre sapiens e outros humanos, o livro sugere que levávamos vantagem não pela força física, mas sim pela capacidade de união entre os membros da espécie, sendo isso explicado pelo enorme potencial do homem de criação de mitos e valores, que resultavam na existência de uma consciência coletiva e, consequentemente, na solidariedade. Assim, entendendo a lógica da consciência coletiva como um caminho para o funcionamento da comunidade, o sociólogo Emile Durkheim interpreta a sociedade contemporânea capitalista como um sistema orgânico, ou seja, constituído de partes menores que atuam conjuntamente para a manutenção de seu metabolismo.

            Para que houvesse progresso, seria necessário que cada indivíduo de uma sociedade cumprisse com sua função, havendo uma interdependência entres os membros de acordo com suas respectivas ocupações. Por exemplo: no contexto da revolução industrial e da instalação da cultura liberal, o burguês, dono dos meios de produção, necessita de mão de obra para dar início ao processo produtivo, enquanto que o operariado necessita das máquinas para produzir. Assim sendo, patrão e operariado (órgãos) exercem suas respectivas funções para o bom funcionamento da fábrica (corpo), mesmo que, no fim do processo, a diferença de lucro entre as partes seja gritante. Vê-se, então, que se desenvolve uma sociedade que normaliza a desigualdade social, justamente por depender dela. Porém, tal modelo é não somente injusto como falho, pois basta que um órgão pare de funcionar para comprometer todo o organismo, como ocorrido em 2018 durante a greve dos caminhoneiros que, durante uma semana, levou o país a um cenário perturbado de escassez no comércio.

            Porém, como é possível que pessoas de classes mais baixas aceitem se submeter à vontade das privilegiadas sem questionar as injustiças que sofrem? Desde criança, o indivíduo é submetido aos ideais da sociedade na qual se insere. Instituições sociais como família e escola, associadas à realidade social de cada um, atuam de forma a moldar nosso pensamento e nos adaptar ao funcionamento da sociedade. Dessa forma, cria-se o ideal de julgamento, podendo diferenciar o certo do errado de acordo com a perspectiva sobre a qual formula-se o caráter crítico. Quando envelhecer, o indivíduo estará apto a passar seus ensinamentos a demais crianças e assim se alimenta o ciclo, onde consciências e personalidades particulares influenciam nas coletivas e vice-versa. Assim, em uma sociedade criada a partir da exploração indígena e da escravidão africana, ainda é possível encontrar o valor da “superioridade” entre seus membros, por meio da ideia do “você sabe com quem está falando?”. Logo, exemplos de humilhações ainda podem ser vistos em falas como “cidadão não, engenheiro civil, melhor do que você”, ou “você tem inveja de mim”, etc., provando que o Brasil é um país formado por uma elite atrasada, que ainda tem muita história para estudar. 

            Nesse contexto onde os valores moldam a ideologia da sociedade orgânica, Durkheim estuda o direito como o sistema nervoso do organismo, por se tratar da ferramenta que regula harmonicamente as funções do corpo. O jurista Miguel Reale defende, em seu livro “Teoria tridimensional do direito”, que o corpo jurídico se molda sobre três pilares: fato, norma e valor, indicando a interdependência entre esses fatores. Logo, sabendo que os valores morais de um povo interferem em sua legislação, entende-se que aquilo que é classificado como crime é, na verdade, o que é desaprovado pelo coletivo, e que penas não são fiéis ao fato em si, mas ao julgamento ao qual este estará submetido estando naquela sociedade. À ilustração disso, vemos o texto teatral “A exceção e a regra” do dramaturgo alemão Bertolt Brech, na qual um homem rico é inocentado por um tribunal após assassinar seu funcionário por este significar uma “ameaça”. No enredo, é tratada como “regra” a ideia de um cidadão mais humilde ser mais violento. Logo, mesmo sendo inocente de qualquer crime, o tribunal ignora a situação em que estava o falecido, e julga o caso como legítima defesa por parte do homicida, alimentando o estereótipo do pobre bandido contra o rico herói. Exemplos de casos assim são vistos diariamente em noticiários, em que jovens negros e pobres pegos com pequenas quantidades de drogas são julgados como “traficantes”, enquanto que um rapaz branco de uma família rica brasiliense que trazia animais ilegalmente de outros países é julgado somente como “estudante”.

            Enquanto injustiças acontecem diariamente, a sociedade segue “funcionando”. Nesse sistema orgânico em que classes se conectam somente por questão de necessidade, e não de humanidade e empatia, vê-se uma falsa solidariedade que nos é imposta ao compormos a sociedade. Assim, o método de análise social proposto por Durkheim permite a compreensão desde o modelo econômico vigente até a perpetuação de preconceitos vistos na sociedade contemporânea, provando que dificilmente haverá mudanças sociais enquanto valores ultrapassados seguirem tomando conta da consciência coletiva.

João Victor Rodrigues Ribeiro – 1° ano Direito Noturno

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