domingo, 23 de agosto de 2020

A liberdade que oprime

Karl Marx, famoso sociólogo alemão, desenvolveu juntamente com Friedrich Engels a corrente do materialismo histórico dialético, que consiste em aplicar o conceito da dialética na materialidade da história. A dialética é a oposição entre uma tese (ideia concebida sobre um fenômeno) e uma antítese (ideia oposta à tese). O produto dessa oposição seria a síntese, que funciona como uma conclusão que mescla tese e antítese. Para Marx, a tese seria a burguesia, considerada classe dominante, e a antítese o proletariado, a classe dominada; a relação dialética entre esses dois grupos seria a luta de classes, que move a história.

Essas lutas de classes ao longo do tempo permitiram que ocorressem diversas mudanças, como por exemplo a conquista de direitos trabalhistas, que regulam as relações empregador-empregado, teoricamente não permitindo que haja exploração e condições degradantes de trabalho. No entanto, esses direitos trabalhistas, em conjunto com os movimentos sindicais e a interferência do Estado na economia, foram vistos por economistas como a causa de colapsos e crises do sistema capitalista, gerando assim a doutrina neoliberalista. O neoliberalismo defende que o Estado deve interferir minimamente no mercado, portanto deveria haver flexibilização das leis econômicas e trabalhistas, contenção de gastos públicos e privatização de estatais.

Com a globalização e esse novo liberalismo, o desemprego aumentou, fazendo a classe dominada perder sua força sindical. Dessa forma, a classe dominadora aproveitou-se do enfraquecimento do coletivo para impor uma dinâmica de trabalho mais flexível, individualista, fomentando a competição entre as pessoas, adotando o sistema de produção denominado toyotismo, sistema originário da empresa japonesa Toyota, que flexibiliza e terceiriza o trabalho e dá à indústria o controle sobre a sua própria demanda, evitando acumulação de estoque.

A flexibilização do trabalho e a terceirização do mesmo exigem mais de pequenas empresas e injunge nos trabalhadores o risco eminente decorrente de uma relação de trabalho que não é mais pautada na ideia de construção de uma carreira, mas em uma constante mudança de empregos, exigindo que as pessoas se adaptem cada vez mais a todos os tipos de funções, do contrário, ficarão desempregadas. Ou seja, as relações estão pautadas no curto prazo, no imediatismo.

Richard Sennett, sociólogo estadunidense, aborda essa dinâmica de trabalho em seu livro “A Corrosão do Caráter”. O autor define que o caráter de uma pessoa é o conjunto das características pessoais que ela mais valoriza em si mesma, um conjunto construído ao longo do tempo, baseado em suas experiências. Isso posto, ele questiona “como decidimos o que tem valor duradouro em nós numa sociedade impaciente, que se concentra no momento imediato?” (p. 10), em outros termos, como um indivíduo vai desenvolver seu caráter se tudo em sua volta está mudando com uma velocidade incontrolável? Sendo assim, percebe-se que a competição exagerada e o individualismo decorrentes do capitalismo flexível são novas formas de dominar os trabalhadores sem que eles percebam, pois “o poder de fascínio exercido pelos novos paradigmas capitalistas tem uma capacidade avassaladora de encobrir seu substrato mais perverso” (ALVES, CARMO, 2014), dando às pessoas uma falsa sensação de liberdade.

A problemática do exacerbado individualismo se encontra no aspecto do enfraquecimento das mobilizações sociais, muito importantes para a manutenção dos direitos dos trabalhadores. Se as pessoas estão com o pensamento concentrado em si mesmas, elas não vão se comover pelo conjunto. Um exemplo disso é a greve dos Correios, anunciada no dia 18 de agosto de 2020, que segundo o Sindicato dos Trabalhadores da Empresa Brasileira de Correios Telégrafos e Similares de São Paulo (SINTECT-SP) é “contra a retirada de direitos e benefícios, pela manutenção dos empregos, pela preservação dos direitos já conquistados pela categoria” , além disso, também visa barrar a privatização dos Correios. A greve, uma luta coletiva, está recebendo diversas críticas nas redes sociais por conta de atraso na entrega de encomendas. Ou seja, as pessoas querem tanto que os serviços sejam prestados imediatamente, que elas não conseguem enxergar a legitimidade de uma situação em que isso não ocorre e nem que o seu individualismo pode prejudicar as conquistas de uma classe inteira de trabalhadores.

Conclui-se que essa flexibilização do capitalismo afeta diversas relações sociais, pois molda a forma que todas as pessoas vivem, tornando-as individualistas e imediatistas sem que elas percebam, combalindo a coletividade e dando espaço para que a classe dominadora retire mais direitos trabalhistas. Se não há quem lute pelos direitos, como eles serão resguardados? Isso só beneficia aqueles que estão no topo da pirâmide social, os que monopolizam o capital, enquanto o proletário que acha que tem liberdade está na base dessa pirâmide, sustentando seus dominadores e suas ideologias.

 

Referências:

ALVES, Ana E. Santos; CARMO, Roney Gusmão. Capitalismo flexível: representações sob uma pretensa “sofisticação”. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 17, n. 69, p. 211-241, jul./set. 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.21056/aec.v17i69.833. Disponível em: http://www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/article/view/833/683. Acesso em: 20 agosto 2020.

Carmo, Roney & Alves, Ana. (2014). Capitalismo flexível: representações sob uma pretensa “sofisticação”. Caderno de Geografia, v. 24, n. 42, 2014. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/geografia/article/view/6043. Acesso em: 20 ago. 2020.

SENNETT, Richard. A Corrosão do Caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. 14ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.

SINTECT-SP. Começa greve nacional da categoria ecetista. Disponível em: https://www.sintect-sp.org.br/noticias/sintect-sp-correios-greve-nacional. Acesso em: 20 ago. 2020.


Bianca Vipiéski Araújo - 1º Ano - Matutino

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