sexta-feira, 17 de abril de 2020

Mentiras disfarçadas de ceticismo; ignorância disfarçada de humildade

O tema para a elaboração desse texto, proposto em tempos de crise, era sobre o direito de confrontar a ciência. Em tempos mais mundanos, talvez eu escrevesse esse texto de um ponto de vista mais moderado, exaltando a importância da liberdade de expressão e do direito à dúvida e do direito de errar, mesmo diante da ciência como uma instituição, como importantes ferramentas no desenvolvimento do conhecimento e no desenvolvimento do próprio espírito humano, uma posição difícil de ser criticada, de ser desafiada. Mas não estamos em tempos mundanos, estamos em tempos de crise e esses tempos me lembram que não há nenhuma beleza inerente a uma posição moderada e neutra, nem ao discurso ideológico infalível mas inútil. Dado esse contexto, me encontro muito mais alinhado com a posição tomada por William K. Clifford em seu texto The Ethics of Belief, de 1877. Em especial no excerto a seguir:

"Um dono de navios estava prestes a enviar um navio de emigrantes para o mar. Ele sabia que o navio era velho, e que não tinha sido muito bem feito em primeiro lugar; que ele já tinha passado por muitos mares e climas, e frequentemente precisava de consertos. Dúvidas lhe foram sugeridas de que talvez o navio não fosse capaz de fazer mais uma viagem. Essas dúvidas assombravam sua mente, e o faziam infeliz; ele pensou que talvez ele devesse completamente reformar o navio, mesmo que isso viesse a um grande custo. Porém, antes do navio partir, ele conseguiu superar essas reflexões melancólicas. Ele se convenceu de que o navio já tinha conseguido fazer tantas viagens e sobrevivido tantas tempestades que era besteira pensar que ele não conseguiria completar essa viagem também. Ele iria confiar na providência divina, que certamente iria proteger de qualquer mal essas pobres famílias que deixavam sua pátria em busca de melhores oportunidades. Ele iria dispensar todas as rudes suspeitas sobre a honestidade dos construtores navais. Dessa forma ele adquiriu uma sincera e confortável certeza de que seu navio era seguro e capaz; ele o viu zarpar com o coração leve, e benevolente desejos de sucesso para os exilados em seus exóticos lares futuros; e ele coletou o dinheiro do seguro quando o navio afundou no meio do oceano, não deixando nenhum sobrevivente para contar a história.
O que podemos dizer sobre ele? Certamente isto, que ele é completamente culpado da morte destes homens. É verdade que ele sinceramente acreditava na segurança de seu navio; mas a sinceridade de sua crença não o desculpa de nada, porque ele não tinha o direito de acreditar nas evidências que ele havia produzido. Ele não tinha adquirido sua crença honestamente, a partir de uma investigação paciente, mas somente por ter silenciado suas dúvidas. E mesmo que no fim ele tenha sentido completa certeza, tal que ele não conseguisse imaginar o contrário, mesmo assim foi ele que conscientemente e voluntariamente se colocou em tal estado mental, e ele deve ser considerado responsável por isso."
Se Clifford já condena o consentimento da ignorância, ainda que desprovido de motivações maliciosas e apenas como um fruto do otimismo existencial humano e do desejo pelo conforto, o que dizer dos líderes das grandes nações neoliberais de hoje? Esses homens que se passam por céticos aspirantes a cientistas em público, mas em privado praticam como contar suas mentiras, mentiras que lhes são dadas pelas grandes corporações e que eles aprendem a seguir cegamente. Esses homens que defendem sua ignorância como um símbolo de sua humildade que os conecta ao homem comum, apesar de serem todos filhos de elites, que sempre dispuseram de conforto e de boas escolas e de todas as oportunidades para retificarem suas ignorâncias, e hoje dispõem de tantos especialistas quanto desejarem não só para lhes aconselharem mas para também lhes ensinarem. Esses homens que foram adestrados para consumirem e regurgitarem uma dialética egoísta, desprovida de empatia e de consciência coletiva, focada apenas em criar o ambiente ideal para consolidar o eterno abuso da população e do planeta nas mãos dos grandes vencedores do sistema capitalista.

Não tento negar as dificuldades sistêmicas e certamente intencionais de se tentar ser uma "pessoa bem informada" nos tempos atuais, mas por favor não depositem sua fé naqueles que foram eleitos para lhes abusarem. E se desejarem contestar as opiniões de infectologistas e virologistas, não o façam apenas para aliviar seu desconforto, e não o façam através do silenciamento das dúvidas, mas sim através de uma honesta e paciente investigação e estudo. E não, uma postagem em rede social ou uma manchete sensacionalista de uma imprensa sub-serviente aos interesses do mercado capitalista não são uma "investigação honesta e paciente", são apenas preguiça mental auxiliada e encorajada.

Thiago de Oliveira Lopes - 1º ano de Direito - Noturno

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