sábado, 17 de agosto de 2019

A ADPF 54 e a autonomia do direito


A ADPF 54, julgada em 12/04/2012, discute a constitucionalidade da tipificação nos artigos 124, 126 e 128 do CP da antecipação terapêutica do parto nos casos de anencefalia. Por maioria, os ministros acordaram pela inconstitucionalidade dessa interpretação.
Ouvidas entidades médicas, religiosas e representativas dos direitos das mulheres, os ministros ponderaram – em termos gerais – sobre a potencialidade de vida extrauterina do feto anencéfalo enquanto bem jurídico a ser tutelado pelo código repressivo, os riscos à saúde física e mental da gestante e a competência do STF para reconhecer como inconstitucional a interpretação segundo a qual é típica a interrupção da gravidez nesses casos.
Relevante considerar na atuação dessas entidades o paradoxo de encamparem todas – a despeito de favoráveis ou contra a Arguição – o direito à vida e à dignidade humana como princípios constitucionais a serem defendidos, ao mesmo tempo em que descortinam certa influência – ou expectativa de influência – de setores sociais mobilizados no campo de atuação específico do Direito, como Bourdieu aponta.
Exsurge do julgado, como ponto fulcral, a discussão acerca da competência do STF para remover a tarja de delitividade de uma conduta tipificada, e a decisão revela algum grau de descolamento entre a opinião pública expressa pelos amicus curiae e a decisão prolatada pela corte. Evidencia-se aí que, apesar de não gozar de plena autonomia, o Direito possui certo grau de liberdade, atua com parâmetros próprios, opera com linguagem e institutos que lhe são particulares e possui uma lógica interna que se impõe a despeito da opinião majoritária.


Genilson Faria - 1º ano noturno

Manda quem pode

Gestações cujos fetos são anencéfalos vem sendo interrompidas a despeito da disposição no Código Penal que, a princípio, tipifica este ato como criminoso, passível de punição tanto da gestante que consente tal interrupção, quanto dos profissionais que a auxiliam no feito. Tais interrupções ("aborto" para alguns, "antecipação terapêutica do parto" para outros) vinham sendo executadas com o respaldo de decisões judiciais passíveis de revisão por instâncias superiores, sendo necessária uma pacificação sobre o tema, conseguida por meio da ADPF 54.

Num primeiro momento, a sociedade brasileira viu como objeto da ADPF 54 a legalização do aborto, ou mesmo a descriminalização do aborto em mais uma hipótese além das duas já descriminalizadas pelo Código Penal. Sob esta impressão, posicionaram-se rapidamente (e radicalmente) os movimentos antagônicos que usualmente se opõe quanto ao tema aborto: religiosos de um lado, feministas de outro. Cada grupo, em consonância com seu habitus, tratou de protestar com seus argumentos usuais contra ou a favor - os quais, veremos adiante, tiveram importância secundária na discussão do tema.

Vale lembrar que o motivo pelo qual a ADPF 54 foi proposta consistia na busca por segurança jurídica para aqueles que praticavam a interrupção terapêutica da gravidez de anencéfalo, receosos de reformas nas decisões judiciais que autorizavam a prática em cada caso concreto individualmente, com consequente enquadramento criminal.

A maioria do plenário do STF, acompanhando o voto do relator, opinou pela não criminalização da interrupção terapêutica da gestação de anencéfalo, por considerar que não haveria vida a ser prejudicada, considerando não haver atividade cerebral e expectativa de vida extrauterina que ensejariam a proteção jurídica, não sendo possível tipificar a prática como aborto.

A despeito dos argumentos pró e contra, nota-se que o argumento utilizado pelo relator é meramente hermenêutico: interpreta-se o conceito de aborto conforme seu próprio juízo do que seria a vida juridicamente protegida. Não levou em conta aspectos religiosos, que sustentam haver vida e espiritualidade desde a concepção, tampouco aspectos garantistas dos direitos reprodutivos (ainda que os tenha citado no voto). Assume então um caráter formalista, na medida em que fecha-se no próprio Direito, conforme definido por Bourdieu.

Este tipo de posicionamento por um lado blinda o campo jurídico de influências de outros campos (religiosos e ideológicos). Por outro, assume a responsabilidade de definir questões técnicas, muitas vezes sem o devido respaldo teórico. O Direito brasileiro garante ao juiz a autonomia de decidir conforme seu próprio convencimento, sem que este seja obrigado a considerar aspectos técnicos.

Aos técnicos, em seus devidos campos de atuação, resta resignar-se sob a violência simbólica que sofrem ao depararem-se com argumentos como a comparação, feita pelo presidente da sessão que julgou a ADPF 54, do "extermínio do anencéfalo" com questões racistas e sexistas. Ainda que, nesta decisão, o voto do presidente tenha sido vencido, argumentos tecnicamente vazios (além de apelativos e sensacionalistas) como este são frequentemente utilizados para embasar decisões judiciais.


O poder simbólico e as decisões judiciais

Pierre Bordieu, notável influenciador do pensamento sociológico do século XX, analisa na obra “O Poder Simbólico” a dinâmica do exercício de poder nas diversas estruturas sociais. Mais especificamente no capítulo “A força do Direito: Elementos para uma sociologia do campo jurídico”, o autor busca esmiuçar as características e implicações da esfera do Direito a fim de localizá-lo como parte constituinte do aparelho Estatal. Busca-se, por meio desta exposição, relacionar os conceitos apresentados por Bordieu a um caso concreto: a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, que, em 2012, garantiu a interrupção da gestação de feto anencéfalo no Brasil.

Inicialmente, o autor procura entender e conceituar o campo jurídico. Como campo, compreende-se um espaço com dinâmicas e capitais específicos, possuidor de forças e recursos que são intrínsecos a sua dinâmica de funcionamento. Para Bordieu, o campo do Direito funciona baseado nos princípios de autonomia, neutralidade e universalidade. Tais princípios encontram-se na prática jurídica, como na ADPF em questão, na qual o órgão de máxima expressão do poder judiciário no Brasil deliberou, de forma independente, a autorização da antecipação do parto de fetos anencéfalos, sem levar em consideração a influência e as ideologias de parcelas da sociedade (como instituições religiosas) e proferindo uma decisão que paira sobre todos os cidadãos de forma indistinta.

Bordieu discorre, ainda, sobre o monopólio construído por esse campo em torno de si mesmo, retirando o poder de deliberação dos indivíduos- ao menos de forma direta. Criou-se um ambiente concorrencial, um “monopólio do direito de decidir o direito” (Bourdieu, 2001: 169), responsável por compor instâncias hierárquicas entre os próprios operadores do Direito. Nota-se que, na decisão em questão, o corpo do Supremo Tribunal Federal era composto majoritariamente por homens, decidindo algo que influenciaria a parcela feminina da sociedade.

Para o autor, o campo jurídico é responsável por constituir e manter a ordem social. Por meio das decisões judiciais, interpretações são outorgadas como verdade. Não se pode deixar de pontuar, contudo, a influência de outros campos nessas interpretações. Nessa decisão específica, os ministros utilizaram-se amplamente do postulado científico que delimita a morte: ausência de atividade cerebral.

Em suma, Bordieu conceitua, demostra e exemplifica o funcionamento do campo jurídico, tanto interna quanto externamente. O coloca como constituidor e mantenedor da ordem social através do uso da violência simbólica, estruturante a si mesmo e possuidor da capacidade de definir outras relações de poder e constituir a realidade, assegurando a legitimação da forma estatal. Esses conceitos podem ser observados de maneira concreta na ADPF nº 54 e em todas as outras decisões judiciais, desde as mais simples até as tomadas pelo Supremo, demonstrando, desse modo, o poder da esfera jurídica em ação.  

Julia Martins Rodrigues (1º ano diurno)

ADPF 54 vinculada ao pensamento de Bourdieu

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, realizada em 2012, garantiu a procedência do aborto de anencéfalos. Dessa maneira, proibindo a condenação tanto da gestante, quanto do médico(a) que realizou o procedimento. No entanto, mesmo com a decisão, a pauta sobre o aborto de anencéfalos continua gerando polarização, Se por um lado acredita-se que a vida tem início já na formação do zigoto e a regulamentação do aborto de anencéfalos poderia causar um processo de eugenia. Por outro, tem-se a garantia da escolha da mulher e de seus direitos humanos, além da taxa no qual  50% dos anencéfalos morrem antes de seu nascimento e não existe um tratamento ou cura para os bebês anencéfalos.
Segundo Bourdieu, a mobilização dentro do próprio direito é possível. No entanto é necessário seguir o ordenamento jurídico e propiciar uma tentativa de neutralidade. De acordo com o ministro Gilmar Mendes a decisão de procedência ao aborto de anencéfalos está prevista no código de Penal (como causa de excludente de ilicitude), devido ao risco que a gestação pode causar a gestante. Assim, a decisão dos ministros segue o ordenamento jurídico e proporciona a sua mobilização. 
De acordo com Bourdieu, o direito deve ser universal. A temática do aborto de anencéfalos mostra esta universalização, já que, proporciona o avanço dos direitos humanos e do direito das mulheres para toda a sociedade. A gestação de um anencéfalo promove muito sofrimento para a família e, especialmente, para a gestante, assim,  a decisão de manter ou não a gestação deve ser exclusivamente dela, da mulher. Mesmo com a pouca chance de um anencéfalo sobreviver, existe casos de sobrevivência por alguns anos. No entanto, seu cuidado requer um nível de atenção extremamente alto. Dessa maneira, alguns casos, raros, de bebês que sobreviveram até os dois ou três anos de idade requerem a atenção completa da família, sendo esta, obrigada a largar seu serviço e bancar um custo extremamente alto para garantir a sobrevivência do anencéfalo. Assim, o direito mais uma vez não possui o caráter universalista, já que, poucas famílias possuem condições financeiras para manter tal custo. Além disso, a concepção moralista prevista pelo estado, no qual proíbe o aborto de anencéfalos possui um cunho religioso, sendo dessa maneira, excludente para a parcela populacional que não possui uma religião. 

O direito, na perspectiva de Bourdieu, não é autônomo. A demanda popular e seus anseios mudam ao longo da história e o direito, quando seguindo o ordenamento jurídico, deve se mobilizar internamente. O aborto na ocorrência de  anencefalia não respondeu todos os desejos populares (que buscavam a descriminalização do aborto), mas proporcionou um avanço notório para a universalização do direito.






Giovanna Lima e Silva - Direito Noturno

ADPF 54 segundo Bourdieu


Percebe-se que em uma sociedade que se autodenomina desenvolvida e avançada, alguns conceitos que parecem básicos e relativamente simples, como o de “quando começa a vida?” apresentam grandes polêmicas e não se valem de uma resposta concreta e unificada.
A ADPF 54 aborda justamente esse questionamento e nela é possível reconhecer inúmeros aspectos, por exemplo, médicos, religiosos e jurídicos, que rodeiam a sociedade e fazem com que o tema do aborto seja tão complexo. É importante destacar que o STF julgou procedente o pedido contido na ADPF 54 e declarou a inconstitucionalidade de interpretação de que a interrupção da gravidez de feto anencefálico é uma conduta criminosa. Entende-se que essa decisão foi baseada no fato de que a antecipação terapêutica de fetos anencefálicos não está violando o direito à vida, uma vez que há a ausência de potencialidade de vida extrauterina, além de que a permanência do feto no útero da mãe pode gerar riscos à saúde tanto física como psicológica da mulher.
Essa decisão favorável pode ser analisada segundo a perspectiva do sociólogo Pierre Bourdieu. De acordo com os seus princípios, a sociedade está cercada por grupos dominantes que possuem certo diferencial diante das outras pessoas, portando, assim um “poder simbólico” que pode ser material, imaterial ou intelectual.
 Dessa forma, nota-se que no campo político há a dominância de ideais de uma classe social específica, na qual contém seus “Habitus”, ou seja, apresentam características culturais próprias que influenciam nas suas decisões. Assim, tomando o caso da ADPF 54, é imposto uma “violência simbólica” que impede a integridade da mulher, já que a legislação é contrariada para que seja imposta uma convicção individual.
Os ministros, portanto, ao votarem favoravelmente à ADPF 54 cumpriram os seus papeis de doutrinadores, já que eles se utilizaram do espaço possível para implantar novos pensamentos no campo jurídico. Além do mais, se percebe que o direito por estar conectado ao meio social e suas transformações, ele é modificado conforme a sociedade e a moral vigente.

Laura Santos Pereira de Castro (matutino)

A boa face do direito

Definido pelas correntes mais tradicionais como a "ação destrutiva do produto da concepção humana", ou como a "interrupção criminosa da vida em formação", o aborto representa um dos temas mais controversos quando posto em discussão.   O aborto de anencéfalos, antes tipificado como crime pelo Código Penal, por não constar entre as estritas hipóteses não punidas, após ser julgada procedente a ação para declarar inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção de gravidez de feto anencéfalo configurava como crime, passou a ser permitido sem a necessidade de autorização judicial. 

 Os oito votos a favor da procedência da ação, contra apenas dois votos contrários, expõe, assim como Bourdieu defendia, que o direito não é apenas um mero instrumento dotado de uma autonomia absoluta, inerte ao mundo social, como um sistema fechado, no qual o peso das reivindicações sociais   não consegue exercer nenhuma influência. A liberação do aborto de anencéfalos demonstra que os ministros conduziram o direito para as demandas do caso concreto, o conformando com as novas exigências e circunstâncias provenientes das pressões sociais. 

 Nesse cenário, o direito não configura-se meramente como um instrumento a serviço de uma determinada classe, mas mostra-se capaz de assimilar os requerimentos provenientes das pressões externas, revelando, segundo Bourdieu, a historicização da norma, na qual uma norma abstrata é colocada  na história, a elasticidade dos textos é indicada, adaptando-se às novas circunstâncias, de acordo com o espaço dos possíveis. 

 No julgado analisado evidencia-se a correspondência da decisão a este espaço dos possíveis, expressão utilizada pelo autor para designar que os resultados de um processo se externalizam de acordo com os freios de estruturas já preexistentes, que limitam o alcance, a possibilidade das pretensões sociais se tornarem um fato jurídico. Poderia haver a investida em descriminalizar o aborto como um todo, mas este requerimento tem que responder ao espaço do possível, aos vetos morais, políticos, reduzindo-se, então, neste caso, à  autorização do aborto de anencéfalos.

 Os argumentos utilizados pelos ministros favoráveis à procedência da ação se pautam no entendimento de que o anencéfalo não possui potencialidade de vida extrauterina, não havendo a possibilidade dele se tornar uma pessoa, não configurando, assim, como um aborto eugênico, argumento invocado pelos ministros contrários. Além disso, defendem que não há nem mesmo um confronto entre os direitos fundamentais da mulher e os do feto, uma vez que este último não possui viabilidade de vida para tornar-se sujeito de direito, e , dessa forma, se assemelharia à tortura impor a continuidade da gravidez para defender a incolumidade de um feto que não dispõe de  potencialidade de vida em detrimento dos direitos da mulher. Já nos votos contrários é perceptível as limitações dos argumentos utilizados, aparentam querer encobrir o arbítrio presente no voto, e revesti-lo da crença da neutralidade para torná-lo legítimo, já que a razão do juiz não pode transparecer nos autos.

 Pelo resultado do processo, portanto, nota-se que o direito não pode ser reduzido à manifestação do poder de uma determinada classe dominante, nele revela-se que as perspectivas sociais e suas reivindicações também conseguem penetrar, mesmo que obedecendo as fronteiras do espaço dos possíveis, no campo jurídico. Em uma decisão que poderia contrariar grandes parcelas da população, o Supremo Tribunal Federal, decidiu por oferecer a quem realmente tem legitimidade, ou seja, à mulher, o direito para deliberar pelo aborto, ou não, do feto anencéfalo, em um confronto no qual a saúde, a dignidade, a liberdade, a autonomia e os direitos básicos da mulher sobressaíram.

Bourdieu e considerações acerca da APDF 54


A ADPF 54, impetrada em 2012, incumbiu ao STF um posicionamento acerca da questão da possibilidade de antecipação terapêutica em fetos anencéfalos. Certamente o termo utilizado anteriormente para tratar do assunto é consoante à essência da decisão do órgão. A “antecipação terapêutica de fetos anencéfalos”, assim enunciada por alguns ministros, como o relator Marco Aurélio, em detrimento de “aborto de fetos anencéfalos”, demonstra o poder simbólico e o papel da linguagem para a validação de uma opinião, atingida, segundo Bourdieu, ao se transvestir em uma razão universal. A votação que deferiu a arguição expõe a relação de uma luta entre indivíduos que transpõe a luta de classes Marxista; além de ser uma luta interclasses, há também a percepção de um embate intraclasses, com o intuito de dizer, neste caso específico, o que é o direito.
É importante ressaltar o principal argumento de autoridades de outros campos, principalmente da medicina, para que houvesse o real embasamento da argumentação dos ministros que votaram sobre esse assunto: no caso de anencefalia, há a inviabilidade de vida extrauterina. Faz-se mister tal intervenção da área médica para que não sejam declamados pensamentos quiméricos, tais como o de um tribunal, exposto no voto do relator do caso: “Alegou(tribunal) ser a patologia daquelas que tornam inviável a vida extrauterina”; ora, percebe-se, neste caso, o desejo de possuir capital em um campo completamente alheio à seu conhecimento, ocasionando uma fala completamente ilógica, retificada, posteriormente, com uma facilidade extrema, através de argumentos científicos. Destarte, verifica-se que a antecipação terapêutica é extremamente válida, para que, enfim, seja extirpado o motivo de tanto sofrimento físico e emocional que não resultaria em vida extrauterina.
Todavia, o aparente excesso da interferência do poder judiciário sobre o legislativo, permitindo uma interpretação de que talvez haja o descumprimento de uma das espécies de limitações do poder (limitação orgânica) tratada pela constituição federal brasileira. Por mais que seja uma pauta justa, com um fim justo, o melhor modo de obter uma decisão pró antecipação terapêutica, nos casos de fetos anencéfalos, seria através da legitimidade existente conferida ao poder legislativo. Como não é possível utilizar uma balança para medir, de um lado, as mães, seus sofrimentos e suas mortes, caso não houvesse uma decisão pró antecipação terapêutica, e, de outro lado, a seguridade do ordenamento jurídico nacional, que, caso seja rompida, poderá,posteriormente, gerar situações tão bárbaras quanto as sofridas pelas mães destes fetos; basta torcermos para que a decisão pró antecipação tenha sido a mais sábia possível.

              Heitor Dionisio Murad - Direito Matutino - 1° Ano.

Bourdieu e a ADPF 54

O sociólogo francês Pierre Bourdieu, no capítulo "A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico", de sua obra "O Poder Simbólico", reflete sobre o campo jurídico e sua estruturação, que ele afirma ter ocorrido a partir das questões históricas e sociais que condicionam e determinam a sociedade. Além disso, ele afirma que o interior desse campo é constituído pelo espaço dos possíveis, sendo nesse espaço que ocorre a "concorrência do monopólio do direito de dizer" e o surgimento de novas ideias. Porém, essas novas ideias partem de ideologias dominantes, pois são pessoas que fazem parte da classe mais favorecida que lideram as discussões no campo em questão, por isso pode ser considerado um monopólio.
Nesse prisma, em 2012, dez ministros, entre eles duas mulheres e oito homens, no Supremo Tribunal Federal, votaram a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n°54, que discorre sobre a possibilidade da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, também chamado de antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos. Com oito votos a favor e dois contra, o aborto de gestações dessa categoria foi aprovado, tendo em vista a garantia do direito da dignidade humana da mulher e a redução de seu sofrimento, tanto físico como psíquico, por carregar um feto que não terá vida extrauterina viável, considerando que, como afirma o ministro Gilmar Mendes, em sua argumentação, o diagnóstico tem certeza extremamente elevada.
Em suma, Bourdieu aponta que a classe dominante fica responsável pela discussão dentro do campo jurídico, como é visto na composição da mesa que julgou o caso em questão, que diz respeito às mulheres, mas foi julgado majoritariamente por homens que fazem parte da elite brasileira, explicitando que o campo jurídico se tornou um espaço de monopólio do direito de dizer. Dessa forma, essa classe tem posse do "poder simbólico" que ele destaca, que seria essa capacidade de decidir pela maioria.

Giovanna Marques Guimarães - 1° ano - Direito (matutino)