sábado, 17 de agosto de 2019

Manda quem pode

Gestações cujos fetos são anencéfalos vem sendo interrompidas a despeito da disposição no Código Penal que, a princípio, tipifica este ato como criminoso, passível de punição tanto da gestante que consente tal interrupção, quanto dos profissionais que a auxiliam no feito. Tais interrupções ("aborto" para alguns, "antecipação terapêutica do parto" para outros) vinham sendo executadas com o respaldo de decisões judiciais passíveis de revisão por instâncias superiores, sendo necessária uma pacificação sobre o tema, conseguida por meio da ADPF 54.

Num primeiro momento, a sociedade brasileira viu como objeto da ADPF 54 a legalização do aborto, ou mesmo a descriminalização do aborto em mais uma hipótese além das duas já descriminalizadas pelo Código Penal. Sob esta impressão, posicionaram-se rapidamente (e radicalmente) os movimentos antagônicos que usualmente se opõe quanto ao tema aborto: religiosos de um lado, feministas de outro. Cada grupo, em consonância com seu habitus, tratou de protestar com seus argumentos usuais contra ou a favor - os quais, veremos adiante, tiveram importância secundária na discussão do tema.

Vale lembrar que o motivo pelo qual a ADPF 54 foi proposta consistia na busca por segurança jurídica para aqueles que praticavam a interrupção terapêutica da gravidez de anencéfalo, receosos de reformas nas decisões judiciais que autorizavam a prática em cada caso concreto individualmente, com consequente enquadramento criminal.

A maioria do plenário do STF, acompanhando o voto do relator, opinou pela não criminalização da interrupção terapêutica da gestação de anencéfalo, por considerar que não haveria vida a ser prejudicada, considerando não haver atividade cerebral e expectativa de vida extrauterina que ensejariam a proteção jurídica, não sendo possível tipificar a prática como aborto.

A despeito dos argumentos pró e contra, nota-se que o argumento utilizado pelo relator é meramente hermenêutico: interpreta-se o conceito de aborto conforme seu próprio juízo do que seria a vida juridicamente protegida. Não levou em conta aspectos religiosos, que sustentam haver vida e espiritualidade desde a concepção, tampouco aspectos garantistas dos direitos reprodutivos (ainda que os tenha citado no voto). Assume então um caráter formalista, na medida em que fecha-se no próprio Direito, conforme definido por Bourdieu.

Este tipo de posicionamento por um lado blinda o campo jurídico de influências de outros campos (religiosos e ideológicos). Por outro, assume a responsabilidade de definir questões técnicas, muitas vezes sem o devido respaldo teórico. O Direito brasileiro garante ao juiz a autonomia de decidir conforme seu próprio convencimento, sem que este seja obrigado a considerar aspectos técnicos.

Aos técnicos, em seus devidos campos de atuação, resta resignar-se sob a violência simbólica que sofrem ao depararem-se com argumentos como a comparação, feita pelo presidente da sessão que julgou a ADPF 54, do "extermínio do anencéfalo" com questões racistas e sexistas. Ainda que, nesta decisão, o voto do presidente tenha sido vencido, argumentos tecnicamente vazios (além de apelativos e sensacionalistas) como este são frequentemente utilizados para embasar decisões judiciais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário