domingo, 1 de setembro de 2019

A superação das raízes coloniais do ordenamento jurídico

Em um sistema jurídico altamente legalista, as leis acabam tendo papel privilegiado como mantenedoras do status quo, implicando sua influência inclusive nos campos cultural e social. Ocorre que o sistema jurídico como um todo tem raízes relativamente comuns no que tange aos institutos, valores e bens tutelados: são resultados de discussões e doutrinas europeias, importadas muitas vezes sem as devidas adaptações. Dessa forma, inicialmente, é inevitável falar em um primado do direito, em sua abrangência além da União Europeia. Apesar disso, vale ressaltar que no Brasil, acabam tendo relevantes influências na aplicação das leis o Poder Executivo e o Judiciário, de modo que pode haver adaptações à realidade nacional e consequentemente o afastamento da reprodução do colonialismo, longe de dizer que isso está próximo de acontecer. 
O fato de nossas instituições e escolhas sobre quais bens e valores tutelados terem essa raíz europeia mostra-se um problema considerando sua origem antiga, de um contexto de dominação. Não somente da relação entre países, que refletia o imperialismo, mas também das desigualdades que eram promovidas nas terras coloniais, intrísecas ao modelo capitalista da época (não tão distante do atual) e que deixaram graves marcas sociais por onde persistiram. 
Apesar disso, se por um lado nosso sistema jurídico tem profundas influências do Norte, por outro há aqui firme produção literária no campo jurídico, que pende para todo tipo de posicionamento. Fato é que essa estável tradição doutrinária já torna prescindível a importação de ideias europeias e, mais que isso, abre espaço para o desenvolvimento de correntes aplicáveis no Sul; exemplifico aqui a lendária lição segundo a qual os iguais devem ser tratados igual e os desiguais, desigual, na medida de suas desigualdades. 
Destaca-se que o Legislativo não é a única porta de entrada para as normas aplicáveis aos casos concretos, considerando a força dos princípios, geralmente doutrinários, provinda do neoconstitucionalismo e a importância dada aos precedentes judiciais na aplicação da lei pelo julgador. Com isso adianto já outra forma de materialização do sistema jurídico: o Poder Judiciário. 
É nesse Poder, vinculado à noção abstrata de Justiça e, em tese, livre de pressão política ou social, que as regras são subsumidas após o crivo da proporcionalidade e razoabilidade. É nesse momento que o direito, na prática, mais “abrasileira-se”. Como exemplo temos o Agravo de Instrumento n.70003434388, pelo qual TJRS pautou-se em conceitos jurídicos indeterminados para fazer trazer à tona a Justiça. 
Obviamente, trata-se de ponto fora da curva. Mas o valor do julgado é o de demonstrar a possibilidade de fugir à reprodução do colonialismo com os instrumentos jurídicos que nosso ordenamento oferece, principalmente no que diz respeito à autonomia dada aos magistrados. Com isso, as inegáveis e históricas exclusões abissais vão sendo superadas, tal como é feito através das políticas compensatórias. 
Além disso, aponto a importância do Executivo, poder baseado em representatividade política e que, por decretos e resoluções, é capaz de dar maior dinamismo à execução das leis e, simultaneamente, em tese, atender aos clamores populares. Trata-se de hipótese perigosa, considerando aos apelas que pode atender, mas não deixa de ser outra maneira de se adaptar o direito à realidade brasileira e fugir das raízes coloniais. Por esse aspecto, por exemplo, pode ser regulamentado o acesso à propriedade, que seria engessado se dependesse apenas do processo legislativo.
Com enorme participação nesse processo de suprir as exclusões abissais, há ainda o Ministério Público, o Ombudsman da sociedade. Essa função essencial à justiça tem a prerrogativa constitucional de fiscalizar a correta aplicação da lei e exigir demandas que por vezes passam despercebidas pela legislação posta, além de, por sua participação no controle de constitucionalidade, promover a adaptação da Constituição à realidade, de forma que não torne-se mera “folha de papel”.
Conclui-se inegável a origem europeia do sistema normativo brasileiro e sua importância na manutenção do status quo, implicando logicamente sua disposição como forma de dominação intríseca às origens em que fundada: o sistema colonial, no campo internacional, e a dominação tendente à preservar as desigualdades, no campo social. Apesar disso, nosso ordenamento comporta diversas formas dinâmicas de fugir ao primado do direito e promover a Justiça conforme a realidade brasileira. Tudo perante a harmonização dos três poderes e pautada em doutrinas e correntes filosóficas, sociais e jurídicas genuinamente brasileiras. O cenário atual é o de superação das desigualdades historicamente consolidadas, não mais o de promoção ou manutenção.
GABRIEL NAGY NASCIMENTO - 3 ano direito noturno

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