O agravo n° 70003434388, votado em 2001 pelo Relator Des. Carlos Rafael dos Santos Junior e demais magistrados trata, em linhas gerais, de um pedido judicial para a reintegração de posse de uma área improdutiva ocupada pelo Movimento dos Sem Terra (MST). A questão discutida para a concessão da área ou não ao movimento é a consonância com as disposições de artigos constitucionais, sobretudo aquelas previstas no art.186, que versam sobre a função social da propriedade, cujos princípios estão repousados sobre a preservação ambiental, produtividade e uso adequado daquela região. Desse modo, o desfecho do caso, ou seja, a inviabilização da reintegração da terra a favor dos proprietários originários, pode ser analisado em relação ao conceito das Epistemologias do Sul.
A advogada Sara Araújo argumenta que na construção dos sistemas jurídicos na América Latina sempre houve, desde o período colonial, uma imposição e, por consequência, uma preponderância do direito europeu proveniente do liberalismo político e das revoluções burguesas em detrimento às formas de organização social existentes no que ela atribuiu de "Sul". A principal garantia que constitui o ponto central do julgado em questão é o direito à propriedade, pautado na dominação política das elites econômicas e das oligarquias em toda a sistemática do ordenamento jurídico brasileiro desde a colonização, período em que houve a incorporação desse "direito europeu" apontado pela autora. Nesse sentido, Araújo explicita que se deveria priorizar as novas formas de se visualizar o direito, principalmente aquelas advindas da própria realidade latino-americana, o que denominou de Ecologia jurídica, caracterizada pela fusão dos elementos mais adequados para a formulação da legislação em um dado país, uma vez que o "direito ocidental" não deve ser eliminado, mas sim visto com equidade em relação aos demais modelos para a incorporação ou não de seus postulados na lei.
A análise do caso compreende, sobretudo, a ótica da chamada função social da propriedade, critério decisivo para a concessão judicial pelo intérprete neste tipo de situação. O latifúndio apresentado no caso, por exemplo, foi declarado como absolutamente improdutivo, doravante contraditório à previsão legal apontada pelo relator com base na Constituição Federal e no Código Civil de 1916 (ainda vigente na época). Por mais que a jurisprudência brasileira não transpareça muitas vezes o caráter progressivo de seus arts. 185 par. único e 186, tais condições são oriundas de outras fontes alternativas à europeia clássica — que podem ser vistas como Epistemologias do Sul. A Constituição Mexicana de 1917, por exemplo, é considerada inovadora na garantia dos direitos humanos de segunda dimensão (direitos de igualdade) — reproduzidos posteriormente pelos alemães na República de Weimar — e prevê o esforço estatal para a efetivação de uma reforma agrária em um país com forte herança colonial em plena metade no século XX, isto é, período em que a Europa liberal era comumente visualizada como o centro do progresso no direito mas, ao mesmo tempo, escondia seus sinais de miséria e desigualdade decorrentes de políticas econômicas predatórias.
Assim, tendo em vista uma realidade jurídica em que as decisões demonstram a dominação das elites regionais e nacionais, a exemplo do agravado julgado em Passo Fundo (RS), é fundamental que os princípios básicos que norteiam a constituinte (alguns deles provenientes ou com influência das Epistemologias do Sul) se sobreponham às visões liberais e neoliberais clássicas — que visam aumento da desigualdade social — e indiquem o cosmopolitismo subalterno, ou seja, as lutas de movimentos e organizações que resistem ao modelo de globalização hegemônico típico do capitalismo ociental como a principal ferramenta para a emancipação dos mais vulneráveis, sejam eles cidadãos sem terras que sofrem com a violência da fome e da miséria, sejam eles indígenas cujas terras e cultura são dizimadas constantemente pelo avanço da ganância dos homens sustentada pelo discurso do desenvolvimento econômico.
Luiz Carlos Ribeiro Júnior - Direito noturno
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