domingo, 18 de agosto de 2019

O conto das mulheres


             O romance “O Conto de Aia” de Margaret Atwood, primeiro publicado em 1985, traz à tona um cenário que, apesar de intitulado utópico, não é distante de hoje ― a onda conservadorista que tem assolado o mundo nos últimos anos abre a discussão para uma “implícita” concretização da história: um Estado totalitário à sua época, com censura midiática e ainda, efetiva dominação masculina e religiosa. Vivendo em uma sociedade fundamentalista como era, as mulheres eram divididas em diferentes “castas” de acordo com sua função ― as férteis, que sendo estupradas, gerariam os filhos de outras, as inférteis, com o propósito de manter a raça humana viva.
           É nesse momento em que um acórdão do Supremo Tribunal Federal, de 2012 ― que julga a procedência do pedido de ADPF 54, que “declara a inconstitucionalidade de interpretação em que interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada, nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, todos do Código Penal”, como cita seu relatório ―  também deve ser abordado, com sua devida atenção. A discussão de um caso como este, em que se pondera direitos como dignidade à vida, à saúde, e livre arbítrio, em uma questão tão delicada como a interrupção de uma gestação, ainda se nota traços da presença de um Direito que se pauta, em contraposição a teoria pura do direito de Kelsen, como resultado de relações de força, como coloca o sociólogo francês Pierre Bourdieu. É tratado como uma abordagem radical e violenta, reafirmando e promovendo desigualdades ― tendo em vista que o aborto, apesar de ilegal, acontece, e àquelas dotadas de maior capital, de forma segura e particular. Nesse caso, como o ministro Marco Aurélio configura “cárcere privado em seu próprio corpo”, se trata de reconhecer às mulheres direitos que tanto historicamente como legalmente tem sido recusados.
      Quando Bourdieu insere o conceito de habitus como sendo uma “estrutura estruturante”, referindo-se à internalização de valores que aderimos como norteadores de nossa vida, tem-se no campo jurídico também sua expansão. Sua prática e discurso constituídos, ao mesmo tempo, por relações de força específicas e lutas de concorrência, dentro de sua própria estrutura dão forma a chamada “violência simbólica”, uma coação não física que causa dor/constrangimento de caráter social, psicológico e emocional quando não se atende ao que é, implicitamente, esperado.
           Assim, a chegada da temática anteriormente citada ao STF indica sua negligência no processo legislativo ― e portanto sua afirmativa em estabelecer dentro de sua própria estrutura, num determinado espaço dos possíveis, sua violência simbólica . O supremo, ao considerar procedente o pedido, nada mais faz que reconhecer “o mínimo do mínimo”. Assim como em "O Conto de Aia", em sua própria forma dado seu tempo, mulheres vem sendo meramente objetos, produtos de uma dominação masculina, que institui seu poder, hoje, de forma legal.   

Júlia Rodrigues Alves
Direito XXXVI (noturno)

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